28 abril 2015

Haverá peito para com responsabilidade governar-se a própria cabeça? - a igualdade é anárquica.

Ao se falar em maior igualdade financeira para os indivíduos em vista de uma participação mais equânime de todos na economia, fala-se, em última análise, de retirar de uns o quinhão das coisas que têm por justo, tendo-se antes questionado, naturalmente, a justiça dessa distribuição.

Justiça, ora, é conceito atribuído a certos estados de coisas no mundo e por natureza pertence à àrea do conhecimento a que se tem chamado de Ética. Assim o questionamento da participação desigual de indivíduos na economia é puramente ético, ainda que alguma aritmética seja precisa no dar suporte à discussão.

E a pergunta mais natural - e talvez única na função - em questões de controvérsia acerca de algo ser ou não
justo parece ser a capaz de informar se os que estão em vantagem e a julgam justa manteriam esse juízo caso se vissem em desvantagem.

Por razões não só psicológicas e lógicas, uma vez que é suposto o indivíduo tender a manter incólume sua própria coerência, a resposta afirmativa não será de surpreender, tampouco os argumentos que a respaldariam e que em última análise se resumiriam à observação de que, para mal ou para bem, a participação avantajada no quinhão econômico resulta de acordos, outorgas que a mesma comunidade, como um todo, conferiu a quem a tem ou a seus antepassados, dos quais herdaram a vantagem. Desnecessário enfatizar a alegação em paralelo de que tais outorgas se teriam dado exclusivamente em virtude do mérito, categoria ética que dispensa questionamentos ulteriores depois de invocada: têm, assim, vantagens por merecerem e por merecerem a própria comunidade lhes outorgou os privilégios de que desfrutam.

Isto, entretanto, não os coibiria de ver, em aparente contradição com o ajuizamento como justa da divisão de bens em que têm vantagem, que é evidente serem desnecessários certos corolários da má distribuição de riquezas sofridos pelos que as desfrutam em menor quantidade, os quais, inclusive, participam com o próprio trabalho da conservação e do crescimento dessa riqueza de que eles próprios têm menos. Deixe-se claro também que o fato de se deixarem vitimar por tais corolários desnecessários só se compreende caso estejam sendo ou por inteiro displicentes para consigo próprios, ou alvos de coação (pela qual tiveram de escolher dos prejuízos o menor).

Portanto o hipotético debate terminaria estabelecendo como justa a divisão desigual de riquezas, mas com a ressalva de haver, sim, corolários insustentáveis por parte dos aquinhoados com menos. Tal resultado, em vista de ter sido obtido por meio de encadeamento de argumentos tendo por base conceitos e princípios da Ética tidos por válidos, terá de necessidade a anuência dos dois lados.

Resta, enfim, proceder aos ajustes, em princípio mero trabalho aritmético, devendo embora ter por respaldo os limites fora dos quais o antes tido por justo deixa de o ser. Por resultado ter-se-ia então um mundo menos desigual ou, dizendo-o de outra maneira, desigual, porém com maior controle dos efeitos adversos da desiguadade.

Esse é, em tese, o mundo a que teve de ceder o dito pensamento de esquerda, de início sustentando o que se chama de comunismo, moderando-o depois no que se chamou de socialismo e chegando por fim à chamada fórmula progressista, acima ilustrada em linhas gerais: mundo nada novo em seus contornos, porém admirável em vista do requerido para que permaneça de pé, a saber, ininterrupta vigilância dos resultados da desiguladade de modo a não se tornarem adversos, em miúdos, intoleráveis.

Um ponto, entretanto, parece ter permanecido cego na discussão acima encenada: se foram estimadas duas possibilidades para que os menos privilegiados tolerem as desvantagens resultantes da distribuição desigual de riquezas, que seriam ou a displicência para consigo mesmos ou a coação, ora, pergunte-se então o que os teria convencido a, antes de sentirem os seus efeitos, aceitar que colaborassem para semelhante distribuição. As razões parecem não ser diferentes das já invocadas para a instalação dos efeitos diversos da desigualdade: inépcia ou chantagem. E, no presente caso, sendo estas agora causas supostas da desigualdade e não mais ou apenas de seus 'corolários desnecessários' ou da tolerância para com eles, está outra vez em julgamento a própria desigualdade, já admitida como justa (pois a rigor os tais 'corolários' são de fato necessários num panorama de condições de vida em desvantagem relativamente a outras).

Observe-se, antes de dar continuidade a esta nova fase do debate acima, precipitadamente tido por terminado, que esse retrocesso tem por foco a questão do mérito, não de necessidade pondo em dúvida o mérito dos favorecidos na partilha desigual de riquezas, mas de necessidade revaliando o demérito dos menos favorecidos. Em que medida, por conseguinte, não mereceram condição melhor os desafortunados?

Assim, procedendo-se ao debate, pergunte-se: permaneceria justa a desigualdade caso tivesse por causa o descaso dos desfavorecidos na partilha? É evidente que o descaso é motivo de demérito, embora seja igualmente possível que tenha resultado de algum engodo. A despeito de no último dos dois casos o mérito de enganar tenha contornos no mínimo controversos, em ambos é inegável ter havido erro da parte dos desatentos ou enganados: deixaram-se levar, em última análise.

Já a hipótese de chantagem (a da escolha do menor dos prejuízos), que confina perigosamente com a outra, de engodo, também não desincumbe do erro a parte em desvantagem, mas confere cores dolosas ao antes mérito singular de enganador, este em princípio apenas culposo.

Neste ponto salva o debate da conflagração radical a invocação de direito havido por fundamental, inquestionável ou evidente por e em si mesmo, o direito do indivíduo a emendar os próprios erros: se errar é humano, igualmente humano tem de ser buscar, a despeito de erro pregresso, o acerto.

Mas agora o conserto de erros corresponde a perdas para os tantos possuidores de mais do montante de riquezas e é provável que não anuam com facilidade à nova proposta. Por argumento sustentam o acima constatado: não é ou foi seu o erro e portanto nada têm a corrigir. Trata-se do velho 'o problema não é meu', que na circunstância tem a virtude duma declaração de guerra.

Em novos miúdos: a se considerar como justa a correção dos efeitos da desigualdade em vista do que os possibilitou, ter-se-á de ter por igualmente justa a correção da própria desigualdade, uma vez esta última ter, em termos éticos, causas iguais. E se houve demérito por descaso, ingenuidade ou por se ter sido coagido, há mérito, em contrapartida, no contrário, em fazer caso, em atentar para as armadilhas e em resistir a coações. E se tal mérito não se obtém do acordo, da argumentação, o resultado final do debate parece indicar mesmo a conflagração.

Em outros termos: a agenda progressista, assim como se mostra, parece ter de ser tolerante para com a pecha de populista que com precisão lhe atribuem, em princípio por comprometer-se com remediar tão-só certas consequências (os tais 'corolários desnecessários') do statu quo da partilha de riquezas do mundo. Quando se percebe que o mesmo questionamento aplicado ao problema da justiça ou justeza de tais consequências é aplicável à própria desigualdade e se revelam as causas éticas de seu advento e manutenção, a agenda progressista tem de ceder lugar a outra de muito menor parcialidade e que não parece corresponder sequer ao que pregaram o chamado socialismo e mesmo o comunismo inicial, uma vez serem ambas soluções de moderação de um Estado planificador e vertical que subjuga a capacidade de conciliação direta dos indivíduos - e, em consequência, sua autodeterminação - por meio de regras específicas cuja permanência as torna incapazes de fornecer bases para a circunstância constantemente movediça da realidade e termina por ocasionar desequilíbrios e insatisfações como as de um grupo de indivíduos premido pelos designios de outro. A rigor não há senão uma só regra cuja durabilidade parece garantida ad aeternum: a de ser imperativo o acordo e de este não gerar quaisquer desvantagens, além de por necessidade tal ter por origem e suporte a autodeterminação do indivíduo.

Ora, uma sociedade exclusivamente composta de indivíduos autodeterminados para a equanimidade é evidentemente dependente do mais alto nível de educação, essa que capacita todos a entender a partilha sem distorções e em quaisquer circunstâncias como a única forma de Estado possível e viável sem qualquer prevalência ideológica garantindo a ascendência de uns grupos sobre os demais e os relativos silêncio e imobilidade sociais deste últimos. Um Estado como o que se descreve não terá prescindido, naturalmente, de função clássica sua, chamada Governo, mas a terá disseminada em cada uma e todas as unidades de sua Federação que serão também os seus indivíduos.

Mas terá prescindido na certa do dinheiro, uma vez que por princípio, sendo não mais do que um signo, um símbolo, está no lugar de não só quaisquer bens que de futuro lhe tomarão o lugar, mas igualmente no lugar da suspeita inquietante de não haver tais bens. Nascido provavelmente para postergar as trocas de bens de uso comum que numa dada circunstância não se podem efetivar, o dinheiro seja talvez o único ensejo ao aparecimento do Estado como ainda hoje o conhecemos, firmado e confirmado como o garantidor do poder de troca desse objeto, sem outro uso para o sujeito, por objetos outros, de usos diversos.

Por natureza produto ou bem como os demais, quaisquer, aperfeiçoaram-se do dinheiro certas propriedades, viabilizando-lhe a função cumulativa de modo exponencial a ponto de poder-se estocá-lo em quantidades gigantescas numa única folha de papel e mesmo numa minúscula fita magnética, acumulação que nenhum outro bem ou produto, à exceção - talvez exclusiva - de alguns dos da informática, pode sofrer sem requerer-se manutenção, além de grandes espaços. Falar de riqueza em tempos atuais é falar do potencial acumulador do dinheiro, do papel de coibidor do acesso geral e irrestrito à administração e à obtenção dos demais bens e do garante que lhe dá o Estado para que o faça. Administrar bens sem a intermediação do dinheiro é tarefa inviável para Estados nos moldes deste que conhecemos, salvo pulverize-se o Governo, dividindo-o - como já se mencionou - com cada um e todos os cidadãos, tendo estes por oriente a universal autodeterminação para o imperativo do acordo sem distorções.

Se pensados como fins em si mesmos, progressismo, socialismo e até comunismo não possuirão instrumentos para moderar e resolver o debate sobre distribuição de riquezas no ponto ao qual ele chega por força do próprio argumento, exclusivamente ético. Tal incumbência parece recair por inteiro sobre o sistema pensado anteriormente em termos históricos e ainda em pleno processo de refino, o Anarquismo, em vista do qual os outros três sistemas foram concebidos tendo por fim viabilizá-lo, serem-lhe pontes. Resta saber, dada a conclusão obtida (ainda que se teime em considerá-la, assim como suas bases, superficial, ingênua ou adjetivo outro que procure desmerecê-la), o que se fará em seguida, isto é, à exceção do habitual baixar as cabeças: terão todos - ou a suposta maioria - peito bastante, não digo para uma guerra (coisa de que o ser humano jamais abriu mão sem ter solucionado nada em toda a história), mas para com responsabilidade governar cada qual a si mesmo?