29 maio 2015

Ora, dir-lhes-ia sem hesitar: parabéns, têm razão, mas não por inteiro ou do modo que imaginam tê-la.

A ideia de 'mercado', como qualquer outra, tem lá seus descaminhos, suas vielas escuras, inexploradas ou quiçá inexploráveis. Se o definimos como de hábito, por exemplo, como o espaço em que ocorrem as trocas de bens, e se o limitamos com exclusividade à esfera humana (pois a rigor há no mercado incontáveis esferas), as conclusões saídas destas disposições preliminares podem ser desconcertantes.

Observemos então esse universo das trocas humanas de bens: não constitui, se o submetemos a lentes que chamou Quintana de abismais, esfera singular, única, mas sistema de esferas diversas, seja embutidas, seja entremeadas, a depender do fator usado para caracterizá-las. Tomando-se por paradigma, por exemplo, a atuação do governo frente ao mercado, percebem-se ao menos duas esferas algo distintas entre si, uma sob seus controle e supervisão e outra lhes escapando, sendo a primeira supostamente mensurada e a segunda de dimensões inescrutáveis (pois fosse de outro modo, ter-se-lhe-ia noção da grandeza). Já quando o critério é o dinheiro, entretanto, o quadro torna-se um tanto mais diverso e caótico, uma vez se saber que na esfera supervisionada pelo governo sua presença é universal e inquestionável, enquanto na outra tal não se pode afirmar com igual segurança, pois é justamente a cor dele, dinheiro, o que confere a relativa visibilidade à porção conhecida desse setor de dimensões imprecisas e por suposto monumentais, embora se intua que atue até muitíssimo mais à frente do que é possível vislumbrar, então diluindo-se ou esgarçando-se para dar lugar ao que se acredita ser o puro escambo, quiçá permeado pela passagem fortuita de outra moeda ignorada e efêmera.

Ou seja, a depender do paradigma ou critério escolhido para estimar-se forma, dimensão ou outras quaisquer especificidades dessas seções do mercado seria possível representá-lo ora por esferas concêntricas, ora por esferas em interseção ou mesmo por outras que tão-só se tocam ou quiçá jamais o façam, sendo estas últimas apenas estimativas, às quais se somam a dúvida mais prosaica quanto a várias delas serem com efeito esferas.

Da presença ou ausência do dinheiro no mercado chega-se ainda aos bens cambiados eles mesmos, que por sua vez se distinguiriam, por exemplo, segundo serem ou não cambiáveis por moeda ou mesmo por estarem de fato sendo ou não trocados por ela. Deste viés entrevê-se espécie de cruzada dos afeitos ao uso amplo e irrestrito do dinheiro através do mercado em toda sua inteireza (se de tal magnitude é possível falar), cujo mote alega inexistir o que ele, dinheiro, não seja capaz de comprar. Trata-se, é evidente, de empreitada quixotesca, primeiro, como se viu, em termos do que seria na totalidade a expressão do mercado quanto aos bens, segundo, por ser de todo descabido, por desprovido de praticidade, estimar em moeda tudo quanto a velocidades impensáveis trocam entre si somente os humanos (pois conota-se aqui, en passant, o quanto trocamos também com seres outros nas demais porções do mercado total, de cuja consideração de momento abrimos mão em prol de não nos embrenharmos nalgum tipo de infinitude). Recomenda-se portanto que se postule a existência de infinitos bens inavaliáveis em moeda para cada outro que é capaz a moeda de apreciar.

Entende-se o por que dessa cruzada das finanças mercado adentro (ou afora): controle. Pois o dinheiro é como tanto o contraste que se injeta num organismo para melhor lhe radiografarem as entranhas, quanto as rédeas ou coleiras. Por seu intermédio ter-se-ia a um só tempo a tão cobiçada visão panorâmica do mercado e a capacidade de menejá-lo. Manejá-lo porque o dinheiro constituiu pletora de virtudes cujos efeitos o assemelham às substâncias indutoras de dependência quando instiladas em organismos. Mas entre as virtudes principais está sem dúvida a possibilidade - exponencialmente maior do que a de quaisquer outros bens cuja troca intermedeie - de se o estocar em espaços comparativamente ínfimos. É provável que nesse aspecto o superem somente os bens produzidos com a informática e, de futuro, com a nanotecnologia, sendo certo, por outro lado, que em vista disto venha o dinheiro a assumir uma e outra formas, venha a transmigrar em espírito para o bit e para o nano-objeto. Fosse tanto insuficiente, sua estocagem dispensa de há muito os cuidados e despesas implícitos no armazenamento da esmagadora maioria dos bens restantes.

Ademais revelou propriedade ainda mais mirabolante, por certo congênita e exclusiva, essa de constituir-se em matéria-prima de si mesmo, o que realiza aproveitando-se de gigantescas ondas de espasmo de hordas de indivíduos em transe masoquista induzido pela perspectiva meio imaginária, meio real de abstinência forçosa dele, dinheiro, processo tal denominado 'especulação'. Esse termo, aliás, é curiosamente apropriado, justo por sua escolha fortuita, para designar o dito processo tanto quanto outro, famoso, 'metafísica', para significar o que se entende por filosofia no que tem ela de essencial. Suposto sugerir seja posição relativa em prateleira de biblioteca de uma entre as demais obras do autor, seja presumido encadeamento lógico para entendê-la no conjunto das outras, 'depois da física' passou por extensão a designar o conteúdo ele mesmo do tal livro, entendido como tratado acerca do que estaria 'para além do visível', 'para lá do mundo físico, para lá do mundo experimentado por empiria', associação esta que, ao menos do viés poético (por assim dizer), capturou os espíritos mais cultivados ao longo dos derradeiros dois mil e quinhentos anos. Por certo intentando designar a elucubração necessária à atribuição de valor monetário aos bens em geral, 'especulação' sutil e poeticamente sugere também o processo de multiplicar-se, de produzir-se o dinheiro em si e por si próprio: como se o fizesse valendo-se de postar-se de frente para espelho - embora o faça de fato a 'tração' emocional humana.

Enquanto símbolo, pois, concebido para representar em grandezas aritméticas tão-só atribuição de valor a bens, o dinheiro passa a significar também o ato de apreciar a si mesmo diante de superfícies refletoras de luz, hábito que se presume compartilhado por diversar espécies de bichos, mas que no domínio do humano assume importância incessantemente redimensionada a cada revisita a conhecida lenda. Como é evidente, vê-se ao espelho somente réplica, de todo intangível senão pelo olho e portanto, falsa, fajuta, ilusória, reprodução de que se perde o controle em razão direta da quantidade de reflexos produzidos. E tal processo, como é também evidente, tem por fim controlar o incontrolável, o mercado, ainda que somente essa porção sua exclusiva da esfera humana e ainda que se não o confesse em prol de preservar uma concepção de mercado 'livre'.

Sim, é verdade, é possível afirmar que como um todo o mercado não é controlável (em princípio por também não ser cognoscível enquanto totalidade), mas não por ser incontrolável de fato ou, como é costume dizer, por ser livre. Seria talvez mais adequado chamá-lo, em vez de incontrolável, de atualmente incontrolado em alguns de seus domínios, e talvez assim esteja por apenas não ser desse modo que se o controla. Porque o mercado, em particular este do domínio humano, primeiro, tem mostrado ser só esse incômodo rebuliço de indivíduos ensaiando controlá-lo, ensaiando controlar, na verdade, os indivíduos restantes (que em conjunto são, na verdade, em que consiste ele, mercado), cada qual por si e tendo por ferramenta o instável dinheiro. Segundo, porque todo esse alvoroço nada tem com 'liberdade', mas com confusão, com caos mesmo: liberdade não é condição inicial, não pode sê-lo; liberdade é fim, ainda que inalcançável, da determinação inata ao indivíduo de por de lado o quanto lhe estorva a ação. Assim, uma vez que tem sido o lugar do estorvo recíproco de sujeitos, mais adequado seria inferir que por mercado se designa o espaço onde cada ator busca conseguir, e é certo que sem sucesso cabal, a liberdade própria.

Dizer do mercado ser livre é, no mínimo patifaria intelectual, se não deficiência cognitiva. E não é por ser efetivamente caótico que tenha de ser dito indomável, em particular em se valendo da lógica equívoca ou mal intencionada derivada da alegação de que é livre. Fosse de outro modo relegaríamos ao laissez faire todo restante conhecido do mercado - que mercado de fato é - de que são atores, ao lado de nós humanos, miríades de entidades do sistema cujo todo chamamos Terra: como constatamos, vivemos de estabelecer, aí também, o controle possível e suficiente para livrar-nos de quase todo o mal, por vezes resultando em nada, por outras somente potencializando e agravando o delicado e precioso caos preexistente.

Portanto, e por fim, é tolo, repito, se não apenas mal intencionado, primeiro, pensar 'liberdade' como condição inicial e não como fim (e ainda que inalcançável na amplitude desejada) de ações de indivíduos de quem se supõe possuir e exercer a vontade; segundo, usar a ideia de liberdade para estabelecer e justificar uma 'Ética do mercado', quando o que o movimenta, mercado, é talvez a única Ética possível, que tem por cerne o indivíduo (e ainda que em muitos aspectos enunciada de forma errônea ou incipiente) - pois mercado é o mesmo que os indivíduos atuando uns com os outros, estes sem os quais ele, mercado, inexiste; terceiro, ignorar que o que já se faz e sempre se fez é o continuado esforço de controle sobre seja qual for a porção do mercado (uma de cujas táticas é alegar sua independência ou liberdade), o que é natural em princípio (pois se procura justo a liberdade, o afastamento, pelo sujeito, do que o estorva, como se mostrou), embora por resultado se tenha obtido nada além da permanente convulsão do confronto de desejos não conciliados; e quarto, descartar a hipótese de ser possível levá-lo, mercado, a um estado duradouro de equilíbrio e assim o conservar, pois é a esperança de obter justo isto o que nos vem motivando a manter-nos agregados faz eras.

Faz tempo que não é mais só ficção.

(Hollywood que se vire atrás de novos enredos e que preparemos nós os estômagos para tolerá-los)

Matéria (em página do Alternet) abre janela sobre uma das profícuas possibilidades de negócios em futuro não muito distante. Na verdade a prática já as efetiva e alguma lei mesmo já aponta para sua próxima consolidação.

Eis aonde, é certo, se quer chegar: o sujeito deve algum dinheiro, é sentenciado a pagar, logicamente, incluso o custo do julgamento, mas é de fato pobre, não tem de onde tirar para evitar que uma firma especializada lhe ressarça a dívida, ganhando assim o direito de explorar sua desvalorizada força de trabalho até reaver o que adiantou, valor multiplicado com o passar dos dias de confinamento (pois não se deixará o indivíduo solto, naturalmente), já que assim lhe são fornecidas casa, comida e roupa (lavada, costurada, tudo produzido por ele próprio e pelos demais detentos), a cujo valor total aplicam-se os juros de praxe. Cumprida a pena - caso cumprível seja, é claro - o liberto terá de enfrentar todas as sanções tradicional e indiscriminadamente aplicadas aos de sua situação, como a dificuldade para achar trabalho, pelo que contrairá novas dívidas ou enveredará por carreira explícita no 'mundo do crime'. Já o crime é combatido, como sempre, pela polícia, agora majoritariamente financiada pela mesma iniciativa privada que compensa financeiramente as vítimas de qualquer tipo de delito e se apropria da força desvalorizada de trabalho  dos infratores.

Trata-se da solução natural dos problemas dum mundo cujas contas jamais fecham, o mundo do capital, que já experimentou de tudo para resolvê-los desde ao menos quando se viu na contingência de atender ao apelo moral dos da sociedade comum e extinguir a escravidão: depois de ter de sustentar por décadas a fio assalariados, transforma-os em terceirizados, a seguir em trabalhadores termporários e autônomos, tudo em nome de fazer as contas fecharem. Mas isto só até darem com a solução definitiva que, temos de reconhecer, em nada difere do escravismo, só que desta vez com base legal sólida, capaz de ser moralmente justficado ao longo de, talvez, eras sem fim: são escravos - digo, mão de obra sob regime compulsório de trabalho - todos os que descumprem a lei. O arremate virá com o adequado Código Civil que, em sendo lei, tem a prerrogativa de criar crimes em tão-só os apontando e denominando, sendo enfim usada para confinar para sempre e com o merecido proveito os 90% de humanos que não tiveram sucesso em suas finanças.

Quem sabe, então, fechem as contas.

Contas? Que contas? Isto será coisa do passado.