02 junho 2018

Greve

Para quem na vida professa a defesa de direitos, uma vez sendo universal o direito a greve, não há em princípio escolha quanto a apoiar ou não grevistas.  Greves são expressão de insatisfação extrema dos indivíduos com as condições de seus trabalhos e sempre dizem respeito à remuneração, de forma direta, ou indiretamente, como quando as queixas referem insalubridade, por exemplo. À exceção, talvez exclusivamente, do serviço público (e é possível que em nem todos os países), o ato de greve é penoso - ocasiona perdas, danos - para toda a comunidade à volta do serviço suspenso, aí incluídos os grevistas, de modo que hemos de convir em que, por um lado, greves não são convocáveis por ninharias - salvo se por autêntico sado-masoquismo - e, por outro, é monstruosa ('teratológica', diria o rábula) a figura da 'greve ilegal'.  Estas considerações parecem preocupantes, mas desse viés não há alternativa a admitir que não existe serviço essencial cuja supressão seja capaz de lançar na ilegalidade os grevistas, nem limites para os ganhos reivindicados (ainda que pareçam ser ou sejam de fato extorsivos) se se professa respeito incondicional à autodeterminação dos indivíduos e ao seu direito consequente, tácito, de numa sociedade capitalista estimarem como bem entendem a própria força de trabalho.

Afinal o capitalismo jacta-se de suceder nesse o jogo tenso de livre depreciação do trabalho alheio (vulgo 'concorrência') mantendo em perspectiva a iminência da escassez à guisa de pressão tática - e nesse contexto, também temos de admitir, não parece caber outra regra ou lei, muito menos uma justa ou duradoura, senão a da 'fricção' do chamado 'mercado', cuja lógica parece ditar que uma vez respeitado mais esse direito básico, à propriedade, ao restante da sociedade tudo se permite para prover isso de que lhe privaram os grevistas se achar por bem discordar do que pedem ou se considerar insustentável a privação. Isto ocorreria, é claro, num mundo capitalista ideal, isto é, se os governos não interviessem, se observassem ou transigissem com as regras do mercado, instituídos, como foram, para justo ou exclusivamente intermediar as relações no mercado dos indivíduos governados ou, ainda, para fazer valerem os termos dos contratos que de livre vontade firmam eles entre si, sendo supostos conscientes ou advertidos das condições ou regras desse jogo (desvalia do trabalho alheio e perspectiva de  iminente escassez como tática).

Entretanto não é que os governos não caibam na função que lhes foi atribuída de princípio e a excedam, desse modo confrontando o mercado, mas sim que, se deixado ao sabor de suas regras, é inevitável em breve o mercado separar os indivíduos em ao menos dois grupos, um a explorar o trabalho do outro, e em seguida produzir a exacerbação dessa exploração, cujo limite é a extinção - por exaustão, na melhor das hipóteses - dos explorados. Por isso governos tendem a ir além do intermediar contratos nos termos em que foram estabelecidos, passando a interferir, limitando-os, nos termos em que podem estabelecer-se, do contrário não haveria ao fim governados e muito menos mercado algum. Em fim de contas, como se percebe, governos tendem a não transigir com o mercado em tudo que este lhes demanda justo para o protegerem, sendo pouco compreendidos nisto, em primeiro lugar, por não haver fórmula duradoura que garanta condições justas para todas as partes sob contrato dessa natureza e que não fira ou desnature a natureza mesma do mercado (as regras do jogo do capital) e, depois, porque governos são, eles também, atores no mercado para além do papel de mediar a que foram destinados desde quando se criaram, e tal por conta de ser igualmente um serviço a mediação que prestam, passível de remuneração como qualquer trabalho.

Como é fácil deduzir, greves são movimentos legítimos do jogo competitivo inerente à concorrência capitalista e nos termos dele seriam descritíveis como atos de apreciação da própria força de trabalho por uns tantos sujeitos que para o efetivarem depreciam necessária e automaticamente a de uns tantos outros por meio da tática incontornável da escassez (aqui, induzida). Coibirmos com repressão as greves, enquanto Estado, como o somos, via governos é visivelmente impensável se não se quer macular o mercado ou, ainda,  os direitos naturais de cada um e todos os seus participantes: mais do que antidemocrática, é anticapitalista a coibição de greves que, e a despeito de serem jogadas fortes, nisto não diferem da norma no capitalismo. Nada impede, entretanto, que se responda ao movimento grevista com força equivalente ou superior, como já sugerido e exemplificado acima, reiniciando o provimento interrompido por outros meios que não compreendam ameaça, entre outros, ao direito dos grevistas à propriedade, fundamental para haver sentido na trama capitalista. Apoiá-las, portanto, e independentemente de quem as declare, além de mostra de compromisso com direitos fundamentais, é contribuir para a exarcerbação de um conflito ou, em outros, termos, é a atitude esperada no jogo autêntico do mercado, atitude genuinamente capitalística.

Irônico, entretanto, é inteirar-nos de o apoio a greves vir partindo mais naturalmente dos seguidores da cartilha marxista, em torno de que se concentra hoje a maior parte dos que se situam na política à esquerda, explicitamente oposta ao jogo capitalista. A razão disto reside no fato de essa cartilha  predicar a exacerbação das contradições ou conflitos inerentes ao manejo do capital com o propósito de o inviabilizar, descrevendo os passos necessários - e, talvez, perpétuos - da transição da sociedade capitalista para a que em tese seria anarquista (e em essência, como tem mostrado a antropologia, incompatível com o conceito de dinheiro). Em vista de que tais passos têm de ocorrer em vigência do capitalismo, à primeira análise a tática se mostra improcedente, como vem demonstrando a História, uma vez que o capitalismo se nutre do contraditório e essa forma de o confrontar pode não passar de mais uma maneira eficiente de prover lubrificante para o funcionamento de sua engrenagem.

A contradição seminal do capitalismo e da qual as demais derivam é o estabelecimento de valores diferenciados para o que não é passível de valoração por ser precisamente um dos elementos do processo inato de o indivíduo conferir valor a tudo mais, a saber, o trabalho. Em essência 'valor' é o que resulta de espécie de diálogo entre necessidade e trabalho, em que uma induz o outro à ação e este a modera. Uma vez obtido isso de que se necessitou ou havendo desistência de o obter, encerra-se o processo de valorar e o que foi ou seria objeto do trabalho e necessidade volta à condição anterior de algo a que se é indiferente. Ainda que compartilhável por indivíduos de distintos grupos, todo valor é em última análise um juízo privado, intransferível em sua inteiridade, inteiramente dependente das condições pessoais do sujeito, isto é, de como percebe sua necessidade e sua capacidade de agir para satisfazê-la. A rotulação com um cardinal do que não é rotulável desse modo - o trabalho - tem por consequência, dentre as principais, o desvio do juízo de valor de seu objeto por excelência, o mundo, voltando-o para exclusivamente isto mesmo que mede ou confere valor numérico ao trabalho, o dinheiro, doravante tornado objeto primeiro de necessidade e trabalho, afastando do sujeito o mundo.

A interposição do dinheiro na relação do indivíduo com as demais coisas é impositiva, mandatória: dinheiro é a forçosa necessidade a ser satisteita adiante das outras todas, o que em outros termos pode significar obtê-lo, se preciso for, até em detrimento delas próprias, como é o caso, por exemplo, do que acarretam em danos as greves ou da destruição de parte do que se produziu - escassez induzida - para apreciar o valor financeiro da parte sobrante. O trabalho pela obtenção de dinheiro termina por resumir-se ao esforço permanente, inexorável, de apreciação do valor do trabalho ele mesmo, processo fechado num círculo ou, caso o indivíduo suceda - ou falhe - seguida ou permanentemente em apreciar o próprio trabalho, numa espiral cujo diâmetro se amplia ou reduz.

Desse viés compreende-se não haver lugar no capitalismo para senão a desigualdade dos indivíduos, tolerada ou não pelos que têm depreciada a força de trabalho (expressão estritamente sinônima de 'vida'), gerando ambiente de submissão que, se involuntária, está em risco permanente de se transmutar em insubordinação. Enfim, o mundo regido pela ideia de dinheiro é mundo em estado perene de guerra em que toda moderação diplomática, se sucede em prevenir conflagração fatal, na verdade a acirra e protela. É tolice, pois, acreditar que se pode derrotar o dinheiro pela força, em conflitos, visto ser pela força, nos conflitos, que ele se perpetua. Resta, portanto, a solução única de abandoná-lo, se é mesmo o caso de alguém ainda incomodar-se ou se é autêntica a queixa de quem se diz incomodar com seu uso. E quanto a isto pode dizer-se que, a despeito de fenômeno inerente ao capitalismo, a greve parece representar, por ironia, a única esperança de dissipá-lo com algo autenticamente seu, no caso, uma greve do uso do dinheiro, desde que universal e eterna - e que melhor se definiria como sorte de jejum ou de necessária e desejada abstinência, como a do uso de droga pesada.