26 outubro 2016

Inspirado num destempero de Ministra

Parece que não, mas há algo de desumano em tratar pessoas a partir de um título: Doutor Fulano, Maestro Sicrano, Juiz Beltrano e assim vai. Sempre me incomodou ser abordado desse modo porque nele se embute uma fieira de cobranças ou expectativas que é humanamente impossível honrar. Uma ideia do que refiro pode ser tida imaginando-se, por exemplo, o custo, para alguém minimamente responsável, de ser chamado de Doutor quando diante do leito dum desenganado.

É verdade que se acerta muito - que acertamos muito - e que mundo afora há número impressionante de compromissos honrados, o suficiente para calar, por estupefação, qualquer pessimista. Mas honestamente e de si para si (que se dispense a confissão pública) nenhum acertador ou honrador de compromissos em sã consciência negará o papel do acaso - da sorte - em seus feitos, ainda que imodestamente o admita modesto. Seria uma temeridade fazer o contrário porque, talvez aborrecida ou magoada, quem sabe a sorte lhe falte na vez seguinte, e aí o sujeito continuará contando com apenas a arrogada competência própria para explicar o malogro: verdadeiramente o que se chama de 'saia justa'.

É certo que títulos correspondem a afazeres ou funções projetados por humanos, mas é certo igualmente que humanos somos incorrigivelmente pretensiosos e quase que como por divertimento vivemos de maquinar maneiras de nos superar, de nos transcendermos - como enchemos o peito para dizer. Com se fosse fácil conseguir mera e simplesmente ser gente!

É possível que, por conta do esforço de tornar-se mais que humano, em alguns sujeitos os títulos lhes tenham colado às caras (como advertiu Pessoa), abrindo assim as comportas para inundar a já custosa faina de ser somente gente daquilo que se pode chamar de efemeridades eminentes, sorte de zoológico de absurdidades que se algo em comum têm é essa demente presunção de haverem deixado para trás a condição humana. E, aqui entre nós, nada mais natural que se trate de monstruosidades, e em tudo distintas entre si, exceto em serem monstruosamente presunçosas, porque a verdade é que ninguém faz qualquer idéia do que venha após o humano, em particular enquanto este não cumpre as tarefas mais comezinhas da condição de humanidade.

Assim de cabeça me ocorre exemplo histórico, o de sujeito que, além de rei, concedeu em ser chamado de Sol e, num espasmo de seu desvario, atreveu-se a equiparar-se ao próprio Estado: como se os demais indivíduos inexistissem, como se Estado não fosse exclusivamente a reunião destes sobre um naco de terra, como se o termo não designasse como esses sujeitos estão, como atuam entre si - e no que infelizmente se tem incluído até tolerarem, sem que se precise até que ponto, bravatas desse calibre. Mas apesar de em sucessivas revoluções vir o povo mostrando, nos derradeiros duzentos e tantos anos, o que ou quem é com efeito o Estado, exemplos de desrespeitos desse gênero têm-se multiplicado: ainda hoje baixamos a cabeça para a ignominiosa sinonímia de Governo e Estado, sem nos darmos conta de que em aceitando-a nos fazemos qual reses que para lá de curral e pasto têm por destino alternativo apenas o matadouro.

Que a insistência na crueza da metáfora me seja de algum modo perdoada, mas é necessária a contundência próxima do ferir para acordar sentidos tão entorpecidos quanto os nossos estão: é provável que por conta de não levantarmos a cabeça do cocho tenhamos concedido em que os de máscaras coladas à cara ditem, façam praticamente tudo em nosso nome - e não por nós: quem sabe de lei é exclusivamente o legislador, de justiça, o juiz, de lucros, o patrão, de economia, o economista, de saúde, o médico, de música, o músico, de filosofia, o filósofo... Ora, e o que esperar de titulados, todos incumbidos das respectivas obrigações supra-humanas, senão que pensem e ajam segundo essas suas apostas condições, em que estão seguros de terem deixado no passado a condição de reses? Nosso marasmo vem do que dizemos sem antes o termos pensado, vem do que outros, em suas delirantes e abjetas condições, têm-nos posto para dizer. A crise nossa é da ideia, que virou miragem e da qual nem mesmo nos atrevemos a nos aproximar para constatar se lhe falta consistência.

E que não me chamem - sequer por ironia - de mestre ou doutor pelo que escrevo: teria tristes conotações. Em fim de contas, como é visível, eu apenas acabo de acordar.

Induzindo um sonho

Essa mania minha de ir muito direto a certos pontos tem lá seus reveses. Ela parte da convicção de que refiro quem certamente sabe mais do que sei, no que estou seguro de estar certo. O problema aí advém de uma bobagem, um esquecimento meu: o de que em geral se está pensando o mesmo de mim (evidente erro!) e no fim me vejo atribuido de intenção que não tive.

Nos últimos tempos meu foco tem estado sobre a lógica do dinheiro, sobre aquilo que se tem mostrado inevitável no seu uso. Em vista das polêmicas rodando o País - e o mundo - ultimamente, não vejo como ser menos direto quanto a isso, em especial por estarmos todos numa perpétua campanha por reformas diversas e à qual não me sinto menos compelido a aderir. Como qualquer outro de nós, procuro fazer essa adesão de maneira crítica, o que não passa do previsível: apontar obscuridades e trazer para elas a luz que cada um pode, pois apesar da alguma balbúrdia que se forma nesses lugares, a esperança é ainda a de que muitas mãos possam complementar-se na realização do trabalho, que examiná-los com múltiplos olhos pode esclarecer mais do que com apenas um.

Assim é que tenho procurado mostrar como no meu entender o tema, que é limitado pelas leituras que faço e vivências que tenho, certas sugestões de mudanças parecem resultar ineficazes, porque, como pus acima, no caso do dinheiro há efeitos do seu uso que são inevitáveis, por mais que se acredite ser possível 'domesticá-lo": coisas de sua natureza, ou seja, sem as quais ele deixa de ser o que é, dimheiro. Minha posição não tem como ser mais clara: voto por sua sumária extinção, mas - é evidente - não deliro achando que isto se consiga, nas condições atuais, da noite para o dia.

Não tenho dúvida de que o mundo sem ele seria indescritivelmente melhor, mas entendo também que nos derradeiros séculos ou milênios não nos temos feito com a necessária fibra para tolerar sua ausência. Viver sem moeda é coisa para uma natureza fortificada física e ainda mais eticamente. Mas assim como nos fizemos no que somos, não duvido de sermos capazes de nos fazermos de outros modos, inclusive num que nos habilite a viver num mundo de exclusivo compartilhamento, em que as idéias de troca e concorrência não passem de memória de um longo e mal sucedido experimento social.

E isto só se consegue em se pensando no assunto, principalmente nas atuais circunstâncias, em que número crescente de pessoas vem identificando esses pontos nocivos, sem entretanto lhes dar os nomes apropriados, quase sempre mostrando-se receosas quanto a admitir que aquilo que lhes é fonte de certos prazeres o seja também de seus maiores desapontamentos. Uma reação comum à introdução da proposta de extinguir o dinheiro nesse contexto de íntimo conflito de interesses é classificá-la como pura fantasia, idealismo, ou seja o que for no gênero: como se não fossemos todos afeitos a fantasiar, idealizar, embora às vezes em assuntos sem maior importância ou consequência! Assim, por que não incluir este na lista pessoal de sonhos em vigília e, para os recatados, dividir com os mais íntimos sua interpretação?

Sequer é preciso estipular um regime diário para o sonhar, haja vista o sem número de ocasiões em que de hora em hora se é acossado por algum aspecto, mesmo sutil, do desconforto, da deselegância e até da destrutividade da existência do dinheiro. Nessas ocasiões é sempre oportuno - por instrutivo - indagar-se sobre a possibilidade de corrigir ou eliminar aquele seu descômodo sem para sempre abrir mão de tê-lo no bolso. Com a devida persistência no método - apoiada, se necessário, em alguma literatura pertinente - em pouco tempo iremos habituando-nos à recorrente, inevitável resposta para essa questão: não!