11 agosto 2019

O sentido exato do 'fator Greenwald'

Para muitos não passará de picuinha, mas serve, seja como for, para aviar a colocação das coisas em lugares certamente mais devidos ou apropriados do que esses onde ainda estão: 'O Cara' - "The Guy" - é condenado a  prisão perpétua (porque, convenhamos, para um septuagenário uma dezena de anos pode até exceder o limite separando-o da eternidade) por 'crime inespecífico'! Onde já se viu coisa tal?

Desnecessário ser-se doutor em direito para saber, antes de mais, que para se tornar passível de punição pelo aparato que administra o Estado o sujeito tem de ter cometido crime prescrito em lei. É por aí mesmo: sem a lei, que o proscreve, ou o declara criminoso, qualquer ato é apenas ato a mais, ato qualquer, o que implica também o velado paradoxo em que se admite ser a lei o que 'faz' o crime! E justo pelo papel crucial de mudar a condição legal de atos quaisquer, não faz qualquer sentido que o faça sem criteriosa especificação do quê e do porquê um ou outro deles em particular passou à ilegalidade. Mesmo alguns daqueles tidos por indiscutvelmente criminosos, como o matar e o roubar, têm de ter, cada qual, sua prescrição em lei, se não por motivos quaisquer, ao menos pelo fato óbvio de numa circunstância como a da guerra, por exemplo, ambos passarem à 'legalidade', e não só: tornam-se aí obrigatórios, sujeitando quem se omite a praticá-los a pena de morte, às vezes mesmo 'em flagrante', sem sequer direito a Corte Marcial!

'Crime inespecífico' seria, por conseguinte, epítome do que, em 'legalês' franco, tem jurista que mostra os dentes trás nuvem de perdigotos para pronunciar o termo designando-o: "teratológico", ou seja aberrante, mostruoso e, não meçamos definição, criminoso. Para se fazer ideia, ainda que vaga, da gravidade deste crime, imagine a si próprio objeto da abjeta sentença, mas se o não conseguir, não há problema: basta abrir O Processo, de Kafka, e se também não for chegado a ler mais do que par de 'memes' por dia, o Welles cuidou de nos legar obra-prima que  fez do livro e na certa tem versão dublada na Rede. Foi quase certamente daí que se tirou o conceito 'crime sem especificidade' e com certeza depois de malograda tentativa de enquadrar "O Cara" em outro, vagamente específico (por impossível tipificar o conhecimemto, sumamente subjetivo, nele implícito), não por acaso originariamente lavrado também em língua alemã e denominado 'domínio do fato', empregado não havia muito para condenar sem qualquer credibilidade um "Cara" outro!

Enfim, tomar 'crime inespecífico' por algo distinto de reles contradição - uma vez inerente à lei especificar o que criminaliza - e, pior, tentar extrair daí algum significado jurídico, como foi o caso o fazerem pardas eminências do direito e da política (a despeito de visivelmente incomodadas, algumas, com o desplante tamanho do juiz), ora, é crime prescrito como 'de conivência', indício sério de que 'crimes sem especificação' já são prática tácita e vetusta na condenação de hordas dentre os hoje amontoando-se na porqueira dos presídios.  E, ora, significados quaisquer, jurídicos ou não, são validamente deriváveis de qualquer contradição, segundo se aprende em Lógica elementar, embora esta, do 'crime inespecífico', conote mensagem deveras expressiva para o universo do Direito, da Política e, enfim, para a cidadania na totalidade: a de que doravante, dada a 'jurisprudência' espúria, é bastante um juiz sentenciar, à revelia de provas e leis, para confinar seja quem for por período ao gosto do julgador.

Entra em cena, então, "O Jornalista", provocada sua responsabilidade profissional por achado que, entanto, se tanto, mostra como se urdiu o óbvio e consabido, o embuste. Reitere-se: desnecessária é qualquer prova além da exclusiva conferência dos autos para o reconhecimento de crimes, esses - sim! - bem específicos, cometidos por quem seria suposto puni-los: as mensagens trocadas no covil são, quando muito, redundantes quanto à função de provas, que legalmente são incapazes de cumprir, a propósito, por se terem produzido sem expressa demanda judicial, não excedendo portanto o papel psicológico da fofoca, que sabe a pimenta nas línguas soltas, sequer comparando-se, nesse sentido, à teia de cartas imaginadas pelo Laclos, sem as quais a cadeia de maldades arrastando a grande parte das personagens de Ligações Perigosas passaria por casualidade, em lugar de por deliberações expressas de um casal em interminável ciclo de paixão e rancor. No entanto têm valor inapreciável, por outro lado, no desmascaramento, na acuação da referida hipocrisia generalizada dos meios jurídicos e políticos sustentando-se da ignorância de natureza patológica da população em geral.

Mantendo o bordão do paralelo com o universo ficcional, impõe-se comparação a seguir, cuja correspondência com os fatos me parece pontual: o sujeito assiste a filme, mas sustenta ter visto nada, salvo depois de ver 'making of' da obra (nada obstante não autorizado pela equipe que a produziu), vendo-se assim constrangido a admitir que o filme - a que deveras assistiu - existe deveras! Ionesco não teria pensado enredo muito diverso! Se não a franca má-fé,  portanto, uma atitude tal se deveria a estupidez absoluta, senão a alguma 'conspiração' de ambas.

06 agosto 2019

Saber o que seja 'poderoso'? Olhe para o impotente.

Essas particularidades dos conceitos, de suas definições: nada se define por conta própria, em si, sendo necessário haver outra coisa para que algo se defina.

Tome-se a ideia de 'poderoso', por exemplo: chega-se perto de um, vê-se não passar de indivíduo como outro. Por si ou em si um poderoso não diz nada, todo o poder que lhe atribuem vindo-lhe, em verdade, de fora, da circunstância de haver, em quantidade multitudinária, quem diz e faz de si próprio impotente.

Advogando para o diabo, alguém pode inquirir: mas não seria o poderoso o que torna impotentes os demais? E em resposta, ouviria o que segue: é provável que não, por sermos todos, em princípio, igualmente poderosos por natureza, o que, a bem da verdade, não é dizer muito, porque, como se sabe, 'poder' designa aquilo que ainda não é nem foi ato, havendo embora condições para que haja ou tenha havido, ou seja, algo vizinho da ficção, de modo que, exceto os faltos de algo crucial dentre o que é comum à maioria, cada qual de nós desfruta de potencialidade equivalente às demais enquanto não decida coibi-la, isto é, enquanto não delibere que para muitos dos potenciais próprios estará fora de cogitação se tornarem atos, desse modo tornando automaticamente mais poderoso quem não se impôs tal coibição.

As razões para tornar a si impotente? É possível haver muitas, embora essa da comodidade pareça ser de importância considerável, já que em ambientes como o resultando do acordo social sob que vivemos, em que vige a competitividade, o exercício de pôr em ato os potenciais exigidos para que se compita é ou parece ao impotente ser por demais desgastante, pelo que escolheria desde apoiar quem compete até abster-se de toda iniciativa, assim entregado-se ao controle e à predacão de quem por sua renúncia deixou de ser um entre iguais e passou à condição de poderoso.