16 fevereiro 2018

A que serve a ideologia neoliberal

'Neoliberalismo' é conceito burilado durante décadas para dar cara nova ao multimilenar capitalismo (que hoje insisto em chamar de 'dinheirismo'). Essa evolução não o tornou em essência num capitalismo distinto, e sim cumpriu mais uma etapa na constante e irrefreável adaptação do 'dinheirismo' às novas exigências dos tempos, no caso esses seguindo-se ao término da primeira guerra mundial, que levou a Rússia à miséria e fez desencadear ali experiência social de proporções inauditas. Fazia pouco mais de cem anos tivera de adequar-se às mudanças impostas pela tecnologia à produção de bens, com a chamada revolução industrial, período em que  foi seguidamente desafiado por ondas de opositores fomentados pelos ideais trazidos pela revolução francesa, desafio cuja culminância a revolução russa representava. As apostas do mundo no fracasso desses revolucionários novos eram sinal evidente do pavor de que uma rebeldia deflagrada numa fila para compra frustrada de pão fosse capaz de pôr de canto ou de enterrar definitivamente o modo particular de escambo, em que se elege um produto para mediar a troca dos demais, resistindo ao acosso de cerca de meia dúzia de milênios e responsável por essência e estrutura do que entendemos ainda hoje por Estado. Enfim, o comunismo, ainda que corresponsável (pois andava de par com o anarquismo) pelos ajustes sofridos pelo Estado até a revolução russa, destituindo monarquias e criando a base do que se chamaria de 'bem estar social', foi vilificado por causa dessa mesma revolução e sumariamente declarado inimigo da liberdade do indivíduo, ou seja, de destruidor do bem estar social, cuja concepção ajudou a promover.

Apesar de abrir uma de suas principais obras com uma teoria da origem do dinheiro, Mises, um dos propositores da ideologia a ser chamada de neoliberalismo, não parece ter-se dado conta, como seus seguidores, de que justo por manter em uso uma moeda o comunismo não passava de um dos incontáveis modos de o 'dinheirismo' adaptar-se às condições que lhe impunha uma época, dessa feita a de torná-lo em prática justa. Em aparência mal desconfiavam os ideólogos do neoliberalismo que por natureza o dinheiro não permite que o submetam a tal exercício de parcimônia, não, pelo menos, por muito tempo, que é axiomática sua rejeição à hipótese de uma sociedade em que ele não estabeleça classes distinguindo quem o possui em maior e menor quantidade, pois se a todos cabem quinhões idênticos seus, não faz sentido sustentar o alto custo de o manter em circulação*. Isto, no entanto, só a persistência no projeto comunista, auxiliada, naturalmente, pela incansável propaganda contra ele, viria evidenciar. A ideologia neoliberal ajudou a alimentar essa empreitada propagandística, bem como nutriu-se nela, tendo contribuído com o grosso dos argumentos visando demonstrar a inaturalidade do objetivo comunista: era preciso, pois, mostrar como o comunismo se contrapunha e de modo destrutivo a ao menos um desígnio da natureza, como o de que os indivíduos sejam distintos entre si segundo seus mais variados aspectos, em particular no que respeita ao valor da força de trabalho, único traço fundamental dos seres vivos que o dinheiro é suposto capaz de mensurar com justeza. Em suma, o neoliberalismo impôs-se descrever a potencialidade inerente ao dinheiro, o único efeito que sempre foi capaz de causar, o de uma sociedade desigual, como se fora isso determinado por lei da Natureza. O ser humano costuma definir-se ou envaidercer-se pelos modos de se contrapor às suas limitações inatas e pelo tanto que o faz, o caso de voar, por exemplo, mas quanto ao comunismo impunha-se a seus opositores dizer como a contraposição que propunha era, ao contrário, motivo para nossa espécie alarmar-se ou vexar-se.

Com esse propósito os ideólogos neoliberais não se vexaram de lançar mão de conceitos na base de modelos ideais de sociedade ainda mais radicais do que o comunista, como o anarquismo (no qual, em verdade, o comunismo teve origem). A autodeterminação do indivíduo - seu direito inato a autogerir-se - viria advogar agora a causa da distribuição desigual de riquezas entre os sujeitos de uma sociedade,  justo o oposto do que preconiza enquanto parte do anarquismo. Mais: a autodeterminação do sujeito viria ser elemento-chave de sorte laboratorial de monstruosidade a que se chamou de 'anarco-capitalismo', organização social gerida exclusivamente por outra aberração, o 'leviatã' denominado 'mercado', livre, enfim, das imposições do Estado pendendo então perigosa e vertiginosamente para a doutrina do bem estar social. Nada mais evidente aí do que a determinação de tornar sedutor o neoliberalismo - na verdade, o capitalismo ele próprio, o 'dinheirismo' - para quem se supunha já compromissado com a ala sócio-econômica dita, em geral, 'de esquerda', artifício comparável, talvez, à culinária das iguarias demasiada e diversamente temperadas na esperança de se adequarem a quaisquer gostos.

O neoliberalismo não passa de uma maquilagem que se aplicou ao capitalismo de sempre para justificar perante as massas - mais e mais afeitas às virtudes do pacto pelo bem estar social - a necessidade de que retorne, sem outros ou maiores disfarces ou subterfúgios, ao seu padtão milenar, clássico, natural, de administração, desta feita não mais ou não tanto personificada numa nobreza, mas num grupo de corporações gigantescas arbitrando e mercadeando absolutamente tudo relativo ao indivíduo comum, da rede de esgoto à Justiça, do nascer ao morrer. Trata-se nitidamente da versão moderna do 'despotismo esclarecido', esse estado de espírito dos poderosos do século XVIII que forneceu os melhores motivos para a famosa revolta iniciada na França, além de para o anarquismo e para o comunismo.

Não é muito, pois, o neoliberalismo, a despeito do que presume aparentar e, isto sim, é distrativo perigoso para o opositor incauto, que se deixa induzir à crença de a ideologia neoliberal ser tão só uma forma hipertrofiada e nefasta do 'dinheirismo', não o 'dinheirismo' - o capitalismo - ele próprio, sem tirar nem pôr - salvo, talvez, pela quantidade descomunal e destoante de maquilagem que lhe foi aplicada à cara. Entre as consequências de pensar desse modo está outra crença, cerne do aludido perigo: a de que depois de demolido o neoliberalismo sobrevirá o 'bom' capitalismo, a crença - já abandonada por quem aprendeu a lição-mestra da experiência comunista - de ser possível o uso justo ou solidário do dinheiro, esperança em contradição com o axioma mencionado acima (segundo o qual distribuição igualitária de dinheiro é exercício de inutilidade, proposição contraditória), cantado nota por nota no elogio neoliberal de si mesmo.

* Esse axioma se funda numa distinção crucial, entre acumulação de produtos do trabalho e acumulação do signo (representação) de seus respectivos valores. Sendo por condição tal signo e em vista principalmente da portabilidade que adquiriu ao assumir a forma de moeda, o dinheiro é potencialnente mais fácil de ser acumulado do que, na prática, os produtos cujos valores representa. Num cenário ideal em que o valor do trabalho (do que este produz, por conseguinte) é estimado pela necessidade do sujeito de usar o que produziu, não faz sentido para esse sujeito a acumulação - e a consequente manutenção - do produzido em quantidades maiores do que sua capacidade de os consumir. É muito mais trabalhosa a proteção de bens de consumo em geral do que a do 'bem' dinheiro, e daí é muito provável vir a urgência por 'liquidez' generalizada de tudo quanto se produz no ambiente economicamente orientado pelo 'dinheirismo'.