01 outubro 2019

De um ditado, a uma fábula: fazendo sentido de uns tantos sinais - ou em defesa da legítima defesa.

Para Sandra Paes.

Pode trata-se de palpite, e exagerado, aquilo de dizer que as grandes ideias aparecem primeiro nas mentes loucas, migrando em seguida para a dos artistas, só então sendo percebidas pelos filósofos, que as comunicam aos homens de ciência que, por sua vez, abrem caminho para engenheiros fazerem delas coisa que se use. Mas se damos algum crédito  a esse hipotético sequenciamento de fatos, não seria também o caso de dar atenção à defesa que há séculos uma certa classe de dementes faz do uso generalizado de armas como preventivo da disseminação da violência? Não que se trate de ideia verdadeiramente grande, embora não se possa negar ser de particular utilidade a atenção que lhe daríamos, como se verificará a seguir.

Esses pobres coitados estariam referindo, na verdade, eles próprios, inadvertidamente alertando a nós demais para o perigo que representam em sendo, como são, adictos de uma rusga que de preferência acabe em sangue - e, de preferência, não o deles. Não que sejam ou se tenham tornado 'bonzinhos': de fato continuam dementes como sempre e intentam desse modo apenas aumentar o número de participantes em seu ritual preferido, pouco se-lhes dando que seu projeto termine por municiar seus alvos preferenciais, de hábito indefesos defensores de sociedade pacífica, que decerto lhes teriam na mira quando necessário.

A razão no fundo de tamanho descabimento não poderia ser mais simplória: estão seguros de que sacarão primeiro de suas armas, de que estarão melhor escudados ou entrincheirados. Em suma, estão certos de prevalecerem sempre, uma vez que sua meta, como a de quaisquer de nós, é o exercício de algum 'poder', no caso, entretanto, esse pífio, destemperado, de submeter todos à própria vontade ou de sobreviver em detrimento de quem quer que seja.

Vale, portanto, dar ouvidos à sua sanha armamentista, assim como ao uso quenp de há muito fazem da violência que lhes inere com as armas que já possuem, e quiçá achar meio de realizar o quanto antes e com o mínimo possível de sujeira, a título de medida preventiva ou legítima defesa, aquilo para que devem estar preparados, caso algo de minimamente coerente lhes tenha restado nas cabeças, aquilo para que, na verdade, todos nascemos:  tornar-nos adubo. Já passa da hora de, por outro lado, seguirmos a moral que, desta feita, um sábio, Esopo, nos legou na fábula do cordeiro e do lobo, e que corresponderia aproximadamente a:  não há razão que satisfaça a um tirano.

De nada adiantou a ovelha argumentar sobre ser impossível ter enlameado a água de que bebia também o lobo, porque ela estava correnteza abaixo, que não poderia ser ela quem o teria xingado no ano anterior, porque só contava seis meses de vida - ou melhor, se algo adiantou para a pobre da ovelha toda essa conversa, foi o ter vivido o suficiente para se dar conta da moral da história ao ser devorada, depois de o lobo 'formar a convicção' de ter sido o pai dela quem o xingou.

O dar a outra face, espécie de contra-argumento final da vítima quando quaisquer outros se mostram irrelevantes na contenção da tirania ou da tortura a que é submetida, teria o condão de confrontar o tirano ou o torturador com a evidência de que falhou na estratégia de procurar justificar seu impulso destrutivo de outro modo que não como mero ímpeto de destruir, de torturar - aliás, torturadores experientes é sabido usarem da argumentação falaz como um de seus instrumentos, de modo mesmo a amplificar a dor que impõem à vítima. Na fábula, entretanto, a ovelha não o utiliza, é possível que por lhe ter faltado a oportunidade, mas é provável mesmo que por já ter sido mais que evidenciada a intenção do lobo e por não estar em meio às intenções dela o capitular. Porque é esse, de capitulação, o sentido central do oferecer a outra face, vindo embora somado a espécie de audácia ou destemor que, a propósito, seria capaz de privar de todo o élan um sádico autêntico e cujo prazer estaria em obter da vítima os sinais incontestes de que sofre a contragosto, diferentemente do masoquista, a quem, ao contrário, deleita o sofrimento.

São poucos, portanto, os capacitados a arcar com tudo quanto acarreta havê-lo usado, e mesmo aquele que o tornou conhecido vacilou ao menos uma vez diante de suas óbvias consequências, quando desejou ter afastado de si tal "cálice", já a meio-caminho do suplício que terminaria numa cruz. O estóico Epicteto foi outro a ter estrutura suficiente para, a despeito do resultados, usar do argumento em uma sua variação, quando advertiu o indivíduo de quem foi escravo de que aleijaria uma de suas pernas se continuasse golpeando-a com tamanha fúria, ou seja, alertou o sujeito para o fato de que inutilizava um de seus próprios bens, de que o alijava da serventia que tinha enquanto escravo, mas não foi ouvido.

É justo aí, no dar a outra face, ou melhor, em o recusando, que a proposta de armar-se vai buscar justificativa: para quem a defende, pois, o argumento final - ou mesmo único - da vítima diante de um acossador teria de ser antes o aniquilá-lo de maneira sumária ou, ainda, a recusa peremptória a capitular ante acosso ou tortura e com que, é bem provável, a ovelha de Esopo gostasse de contar. No entanto não seriam poucos os lobos que igualmente apreciariam ter a mais em seu arsenal esse ítem e que se vestiriam de cordeiro, se necessário, para o pleitear, o caso desses tornados dependentes da química endógena às circunstâncias de conflito, bem como dos que fazem fortunas com o municiá-los.

Enfim, há um aspecto de fatalismo nesses momentos em que de fato parece não haver escolha, senão entre resignar-se a perecer e reagir à agressão cega e surda a todo apelo da razão, ou ainda, a escolha entre dar a vida em nome do quanto conquistou a civilização em termos de ética e dar passo atrás na suposta escala evolutiva, equiparando-se àqueles bichos de que tanto e de modo tão árduo procuramos nos distinguir. Afora isto, resta somente cogitar de prevenir tais ocorrências, se não de todo, ao menos em termos de sua frequência, para o que só se conta com a compreensão do que as causa, se é o caso o abrir mão de todo revide. Os que especulam nesse sentido, entretanto, vêm-se muito amiúde esbarrar - ou buscam arrimo - na que seria, das soluções para o problema, a mais fácil, não fosse também estéril ou dificilmente frutífera quanto ao que se almeja: trata-se da que atribui a algo inerente ao 'bicho-homem' a eventual perda da sua porção de humanidade, mais conhecida como a hipótese do lado mau ou obscuro da 'condição' ou 'natureza' humana.

Se algo de incontestável se quer dizer sobre uma suposta 'natureza humana', isto seria, antes de mais, a natureza elusiva do quanto seriam seus atributos - entre os quais, naturalmente, a capacidade de produzir o que se entende por 'mal' - ou, ainda e melhor, a variegada aparição dos mesmos, ao que parece, atributo ineludível de todos ser vivo, correspondendo mais precisamente à capacidade necessária de adaptar-se aos rigores do meio em que está e cuja alternativa única é o perecer. Em suma, não passa de mero truísmo vindicar o cometimento de más ações pelo indivído com a ideia de 'por natureza' ele ser capaz de as cometer, porque se é capaz de cometer seja o que for, conquanto isso não frustre o que se intenta obter, e tal é ditado não somente pelo que de inato o indivíduo tem, mas por igualmente o quanto o meio em que está lhe exige usar do acervo de suas aptidões.

A consideração disto conduz incontinente ao rol das escolhas feitas no processo de civilizar-nos, não necessariamente ou intrinsecamente más, embora em virtude do uso ostensivo e prolongado umas tantas se tenham tornado maléficas. O fato de havermos permitido - é provável que por ter parecido a nós ser fonte de justiça - consolidar-se no alicerce sob qualquer grei humana - o da produção e distribuição de riqueza, ou economia - sistema  de atribuição de valor, segundo escala numeral,  aos diferentes tipos de trabalho humano não pode ser posto de parte enquanto deliberada - embora precipitada - engenharia das relações sociais em que se naturaliza - sem que se a justifique - a prevalência de uns sobre os demais indivíduos: eis o 'ecossistema' a que nossa natureza vem respondendo.

Vulgo 'preço', o valor em  moeda não se atribui ao produzido, mas ao trabalho de o produzir, como bem alertou Smith, por certo dando azo, assim, a que figuras como Marx daí derivassem intermináveis sistemas. E dizer 'trabalho' é referir tudo quanto possui um ser vivo em resposta ao próprio meio na faina necessária de sobreviver. Não é de admirar que num ambiente engenhado sob semelhantes premissas a 'pulsão' de permenecer vivo engendre soluções cujos resultados são todos passíveis de descrever-se no âmbito da acepção de 'guerra', no caso, uma declarada em regime de permanência e no âmago da sociedade ela mesma.

Prevalecer ou evitar que se prevaleça são os motores tanto dos lobos quanto da resistência que se lhes possa fazer, aí incluso o dar a outra face, porque capitular, mesmo depois de confrontar o atacante, também sinaliza para a opção de abrir mão da própria existência - de abandonar esse jogo - quando fadada a semelhantes penas. Parece não haver outros resultados possíveis de advir dum habitat constituído como o fizemos, nem modos de aí viver-se distintos destes. A diferença é e será feita, como sempre, pelo quanto, dentre tanto, se sabe escolher ou, de maneira mais ampla, pela escolha de revisar e remodelar isto que nos vem induzindo a semelhantes opções.

11 agosto 2019

O sentido exato do 'fator Greenwald'

Para muitos não passará de picuinha, mas serve, seja como for, para aviar a colocação das coisas em lugares certamente mais devidos ou apropriados do que esses onde ainda estão: 'O Cara' - "The Guy" - é condenado a  prisão perpétua (porque, convenhamos, para um septuagenário uma dezena de anos pode até exceder o limite separando-o da eternidade) por 'crime inespecífico'! Onde já se viu coisa tal?

Desnecessário ser-se doutor em direito para saber, antes de mais, que para se tornar passível de punição pelo aparato que administra o Estado o sujeito tem de ter cometido crime prescrito em lei. É por aí mesmo: sem a lei, que o proscreve, ou o declara criminoso, qualquer ato é apenas ato a mais, ato qualquer, o que implica também o velado paradoxo em que se admite ser a lei o que 'faz' o crime! E justo pelo papel crucial de mudar a condição legal de atos quaisquer, não faz qualquer sentido que o faça sem criteriosa especificação do quê e do porquê um ou outro deles em particular passou à ilegalidade. Mesmo alguns daqueles tidos por indiscutvelmente criminosos, como o matar e o roubar, têm de ter, cada qual, sua prescrição em lei, se não por motivos quaisquer, ao menos pelo fato óbvio de numa circunstância como a da guerra, por exemplo, ambos passarem à 'legalidade', e não só: tornam-se aí obrigatórios, sujeitando quem se omite a praticá-los a pena de morte, às vezes mesmo 'em flagrante', sem sequer direito a Corte Marcial!

'Crime inespecífico' seria, por conseguinte, epítome do que, em 'legalês' franco, tem jurista que mostra os dentes trás nuvem de perdigotos para pronunciar o termo designando-o: "teratológico", ou seja aberrante, mostruoso e, não meçamos definição, criminoso. Para se fazer ideia, ainda que vaga, da gravidade deste crime, imagine a si próprio objeto da abjeta sentença, mas se o não conseguir, não há problema: basta abrir O Processo, de Kafka, e se também não for chegado a ler mais do que par de 'memes' por dia, o Welles cuidou de nos legar obra-prima que  fez do livro e na certa tem versão dublada na Rede. Foi quase certamente daí que se tirou o conceito 'crime sem especificidade' e com certeza depois de malograda tentativa de enquadrar "O Cara" em outro, vagamente específico (por impossível tipificar o conhecimemto, sumamente subjetivo, nele implícito), não por acaso originariamente lavrado também em língua alemã e denominado 'domínio do fato', empregado não havia muito para condenar sem qualquer credibilidade um "Cara" outro!

Enfim, tomar 'crime inespecífico' por algo distinto de reles contradição - uma vez inerente à lei especificar o que criminaliza - e, pior, tentar extrair daí algum significado jurídico, como foi o caso o fazerem pardas eminências do direito e da política (a despeito de visivelmente incomodadas, algumas, com o desplante tamanho do juiz), ora, é crime prescrito como 'de conivência', indício sério de que 'crimes sem especificação' já são prática tácita e vetusta na condenação de hordas dentre os hoje amontoando-se na porqueira dos presídios.  E, ora, significados quaisquer, jurídicos ou não, são validamente deriváveis de qualquer contradição, segundo se aprende em Lógica elementar, embora esta, do 'crime inespecífico', conote mensagem deveras expressiva para o universo do Direito, da Política e, enfim, para a cidadania na totalidade: a de que doravante, dada a 'jurisprudência' espúria, é bastante um juiz sentenciar, à revelia de provas e leis, para confinar seja quem for por período ao gosto do julgador.

Entra em cena, então, "O Jornalista", provocada sua responsabilidade profissional por achado que, entanto, se tanto, mostra como se urdiu o óbvio e consabido, o embuste. Reitere-se: desnecessária é qualquer prova além da exclusiva conferência dos autos para o reconhecimento de crimes, esses - sim! - bem específicos, cometidos por quem seria suposto puni-los: as mensagens trocadas no covil são, quando muito, redundantes quanto à função de provas, que legalmente são incapazes de cumprir, a propósito, por se terem produzido sem expressa demanda judicial, não excedendo portanto o papel psicológico da fofoca, que sabe a pimenta nas línguas soltas, sequer comparando-se, nesse sentido, à teia de cartas imaginadas pelo Laclos, sem as quais a cadeia de maldades arrastando a grande parte das personagens de Ligações Perigosas passaria por casualidade, em lugar de por deliberações expressas de um casal em interminável ciclo de paixão e rancor. No entanto têm valor inapreciável, por outro lado, no desmascaramento, na acuação da referida hipocrisia generalizada dos meios jurídicos e políticos sustentando-se da ignorância de natureza patológica da população em geral.

Mantendo o bordão do paralelo com o universo ficcional, impõe-se comparação a seguir, cuja correspondência com os fatos me parece pontual: o sujeito assiste a filme, mas sustenta ter visto nada, salvo depois de ver 'making of' da obra (nada obstante não autorizado pela equipe que a produziu), vendo-se assim constrangido a admitir que o filme - a que deveras assistiu - existe deveras! Ionesco não teria pensado enredo muito diverso! Se não a franca má-fé,  portanto, uma atitude tal se deveria a estupidez absoluta, senão a alguma 'conspiração' de ambas.

06 agosto 2019

Saber o que seja 'poderoso'? Olhe para o impotente.

Essas particularidades dos conceitos, de suas definições: nada se define por conta própria, em si, sendo necessário haver outra coisa para que algo se defina.

Tome-se a ideia de 'poderoso', por exemplo: chega-se perto de um, vê-se não passar de indivíduo como outro. Por si ou em si um poderoso não diz nada, todo o poder que lhe atribuem vindo-lhe, em verdade, de fora, da circunstância de haver, em quantidade multitudinária, quem diz e faz de si próprio impotente.

Advogando para o diabo, alguém pode inquirir: mas não seria o poderoso o que torna impotentes os demais? E em resposta, ouviria o que segue: é provável que não, por sermos todos, em princípio, igualmente poderosos por natureza, o que, a bem da verdade, não é dizer muito, porque, como se sabe, 'poder' designa aquilo que ainda não é nem foi ato, havendo embora condições para que haja ou tenha havido, ou seja, algo vizinho da ficção, de modo que, exceto os faltos de algo crucial dentre o que é comum à maioria, cada qual de nós desfruta de potencialidade equivalente às demais enquanto não decida coibi-la, isto é, enquanto não delibere que para muitos dos potenciais próprios estará fora de cogitação se tornarem atos, desse modo tornando automaticamente mais poderoso quem não se impôs tal coibição.

As razões para tornar a si impotente? É possível haver muitas, embora essa da comodidade pareça ser de importância considerável, já que em ambientes como o resultando do acordo social sob que vivemos, em que vige a competitividade, o exercício de pôr em ato os potenciais exigidos para que se compita é ou parece ao impotente ser por demais desgastante, pelo que escolheria desde apoiar quem compete até abster-se de toda iniciativa, assim entregado-se ao controle e à predacão de quem por sua renúncia deixou de ser um entre iguais e passou à condição de poderoso.

20 julho 2019

Estúpido é o sistema, mas não mais do que os que lhe permitimos continue instalado!

A questão central nossa não é a de um mero desvio ou deslize moral! Sinto muito! É, sim, o sistema, mas não exatamente como o viu Marx.

Desde que cedemos ao uso do dinheiro - conceito urdido, é provável, ao longo de milênios até chegar à forma da moeda, como o conhecemos hoje - e em torno dele organizamos o que produzimos, livrar-nos dos males que por natureza própria ele nos causa tornou-se algo contra que, sozinho, o mero imperativo moral é impotemte, mesmo porque o dinheiro ainda guarda muito da sua aura de promotor de justiça ou da justa negociação, ainda que à força de muita hipocrisia. Adotar as sugestões de boa conduta do Papa ou do Dalai Lama não ajuda em praticamente nada em termos de salvar-nos do capitalismo, seja atenuando-o ou o extinguindo, antes sendo provável que agudize a sensação de impotência - em particular a moral -  diante dele.

É preciso que se entenda a incapacidade de o dinheiro dar conta de distribuir bem a riqueza (que é tudo quanto produzimos), processo que antes, a bem da verdade, ele atrapalha, assim como atrapalha a própria produção, uma vez que tudo se planeja, não em função do produto negociado, mas do seu valor monetário (um signo, símbolo, no sentido de Peirce), que obnubila tudo quanto é de  real interesse relativo ao produto, a quem o produziu e a quem o consome.

A malversação que faz da produção é simplesmente catastrófica, pois de necessidade alija do processo produtivo - e, por conseguinte, da sociedade, já que não tem acesso a salário - parte significativa da mão de obra, já que por princípio não é preciso que todos produzamos o tempo todo, e sim em turnos, uma vez que produzir é, por natureza, multiplicar: na verdade o dinheiro se vale dessa propriedade do trabalho para multiplica-se - o lucro!- e ainda assim é incapaz de fechar contas. Por natureza, também, o dinheiro não pode nem tem como fechar contas, caso contrário, deixa de funcionar.

Não há dúvida de em potência o indivíduo humano ser bom,, no sentido de por natureza pender para a busca do que julga ser bom, mas o uso do dinheiro é, faz milênios, o maior empecilho ao desenvolvimento desse potencial. E estamos presos ao dinheiro por uma questão de estrutura, de sobreviência, cujo desmonte causará  de fato muita dor de cabeça, embora se trate de sistema burro, que nem promove justiça, nem favorece a produção - bem o contrário. Além de evidentemente termos nos tornado eticamente desprezíveis por ter de usá-lo, continuamos a o fazer por medo ou falta de vontade de mudar, mas principalmente por pura estupidez, por falta de curiosidade de saber como ele realmente funciona e por darmos ouvidos às lorotas de quem faz da vida controlar-nos por seu intermédio, usando-o à maneira de rédeas, chicote e espora. E, não esqueçamos: o malfeito - o mal - é em verdade o primogênito da ignorância.

09 maio 2019

A catástrofe somos nós!

O tragicômico é como encaramos o fato de o clima terrestre estar mudando  de maneira crescentemente errática: de um lado, os cientistas, francamente divididos entre culpar o capitalismo ou forças muito maiores, como fatores até então ignorados do sistema solar em sincronia com outros tantos saindo das entranhas da Terra, dois fronts que de necessidade não se excluem; na traseira deles, arrastados pelo debate, nós, 'o público', os maiores interessados, a passarmos os olhos por relatórios e reportagens sobre o tema com o espírito de isto não ser coisa para leigo entender, nada obstante repercutamos feito cornetas tontas e a cada dia, mais (em vista do evidente aumento dos reveses do tempo), quase tudo do assunto que nos cai no colo, sem uma palavra sequer sobre os méritos da controvérsia - porque, como já se sugeriu, isto seria coisa exclusiva de 'especialistas'.

Como consequência desse vício de delegar, ignoramos que ocorre de o nosso sistema de vida, capitalista, ser incompatível com o quadro já se apresentando, pouco importa o viés da ciência para a causa das reviravoltas climáticas: porque se é ele o verdadeiro causador, tem de ser contido (embora o McPherson, especialista 'maldito' da área, esteja certo de não adiantar mais coisa alguma além de encomendarmoa as próprias almas), e se não o é, de qualquer modo é incompatível com o cenário de um par de anos à frente, de sorte que o que devíamos estar fazendo, em vez de passarmos a vida a espernear para vir alguém dar algum jeitinho de todos cabermos nos parâmetros altamente excludentes do capital (coisa jamais ocorrida, mesmo quando fomos a décima ou a vigésima parte de quantos somos agora, e que jamais ocorrerá, por ser isto incompatível com o funcionamento do dinheiro), deveríamos mesmo é estar há anos discutindo feito gente grande alternativas sérias para o capitalismo e tudo que tem ele acarretado para nosso modo de vida, como a estrutura de governo, por exemplo, entre incontáveis pontos outros.

Mas em vista da incapacidade de demonstrarmos outra coisa que não o grau de nossa adição por dinheiro, para quem o tem de sobra e, por exigência mesmo do sistema, tem de continuar fazendo-o mais e mais, nada resta além de tirar o melhor proveito da oportunidade e ordenhar até a última gota a vaquinha da catástrofe climática, produzindo assim uma espiral que não é preciso ser gênio para deduzir onde vai dar: na situação-limite de ausência generalizada dos recursos mais básicos, da comida à Internet, passando por eletricidade e, ainda pior, pela água potável, não há dúvida de que essa será a guerra em que lutaremos, como sugeriu Einstein, com paus e pedras, mas sem que uma só bomba nuclear tenha sido detonada.

06 maio 2019

Da guerra desdenhada

Uma das virtudes do 'dinheirismo', do viés dos melhor posicionados na hierarquia a que de necessidade ele induz,  é a quase completa obliteração, em particular nos ocupantes dos estratos médio e inferior da sociedade, da sensibilidade para os limites entre paz e litígio. Não raro um ato exp!ícito de guerra - declarada ou não - pode passar por desvio circunstancial da normalidade até ser reiterado por outro ou até a governança soar o alarme.

Poucos sentem a permanente inquietação belicosa no cerne de instituições normalizadas, como a perspectiva de ascensão funcional, por exemplo, que até mesmo no interior de grupos cujos integrantes é suposto terem motivos de sobra para forjarem identidade solidária forte, como o dos escravos, é bastante eleger um ou uns poucos para a função de capataz e assim instaurar imperceptível e generalizada disputa que aos poucos dissolve toda possibilidade de consenso. Estenda-se esse modelo ao contexto do possuir-se ou não função remunerável no todo da sociedade, que de fato jamais precisou da totalidade dos indivíduos trabalhando simultaneamente para produzir o necessário e mesmo o 'supérfluo'.

Esses exemplos devem bastar para deixar claro que a grande maioria dos atuais habitantes humanos do Planeta jamais viveu em - ou sequer conheceu - alguma sociedade semelhante à que idealiza ser essa de que é parte. 'Idealiza', sim, porque a continuidade de todo grupo social depende em grande medida da chamada 'doutrinação', espécie de educação que se compartilha quando do contrato social constam pontos nebulosos, insustentáveis - por injustificáveis - sem menor ou maior dose de condicionamento.

Por isto se entende o valor meramente retórico assumido em sociedade como a nossa por idéias doutrinais como a de 'solidariedade', central para a constituição e manutenção do tecido social, bem como por derivadas suas, como a noção de 'amizade' ou a de 'família', todas sujeitas a relativização imponderável, não fosse esta justificável no uso do dinheiro para distribuir riqueza. E nada mais natural é essa condição tornar-se a permanente dum grupo doutrinado para naturalizar a artribuição de um cardinal arbitrário à força vital do indivíduo, número tanto menor - não raro podendo mesmo ser 'zero' - quanto mais fundamentalmente necessária for a função que desempenha no projeto comum de sobrevivência, e nada menos surpreendente, do mesmo modo, do que haver poucos de autenticamente resignados à má sorte, bem como poucos, dentre os que não se resignam, a manifestarem indignação e que, devido ao estremecimento generalizado que causam na teia social, são combatidos, quase sempre pelos demais todos, indiferentemente, quando o mero ignorá-los não bastou para os aquietar.

Na sociedade governada pelo 'dinheirismo' há certa predileção por manter tácitos os pressupostos do conflito, assim como a admissão da maior parte dos seus atos explícitos, espécie de exercício de tolerância máxima pautado pelo cultivo cuidado da hipocrisia. Por isso os sinais inequívocos do que de fato chamamos 'guerra' são detectados com dificuldade uma vez que se toleram, vivendo-se ao lado deles,  efeitos dos mais evidentes desses conflitos cabais, como a miséria: a guerra perpétua do 'dinheirismo' a produz nesse silêncio acordado à volta das tolerâncias permanentemente assediadas, a mesma miséria resultante das guerras de fato, é provável que diferindo desta somente por ser em aparência menos generalizada.

Curioso é com efeito haver contingente significativo de indivíduos intolerantes a esses sinais nebulosos de flagrante conflito e que efetivamente o denunciam, mas que o façam dum viés cuja eficiência é mais do que discutível, uma vez que autopoliciam sua denúncia para dar a entender que apenas relativa a gravidade do contexto, motivados pe!a esperança vã de sobre essa base, a da atribuição de valor arbitrário ao trabalho do indivíduo, ser possível superar todas as dissensões que, não por acaso, ela própria cria. O propósito - não menos alimentado pela hipocrisia - de preservar a todo custo contrato social que por princípio não tem como sustentar-se nem produzir efeitos diferentes não poderia, ele próprio, ter efeito mais tóxico, revelando e propagando a ignorância em cujos interstícios vêm instalar-se iniciativas ainda mais atrevida e explicitamente indistinguíveis da guerra, a de fato, como o extermínio sumário de toda dissidência do pensamento hegemônico, desta feita lavradas em lei.

O quadro geral não poderia ter mais clareza, confirmada ostensivamente pela consulta à História, seja qual for o período observado: existir sob tensão maior - e intolerável - ou menor - e não por isso insofrida - é a norma permitida pelo 'dinheirismo', ainda que, por exemplo, se homogeinize a valoração do trabalho, pautando-a pelo quanto ele dura, como de maneira assistemática se procura ainda fazer, porque mesmo assim permanece franqueada a circulação da cobiça, que ao custo mesmo de grandes sacrifícios individuais tenderá a produzir o que excede o necessário, que terá de viabilizar-se em termos econômicos, o que só se dá com a criação artificiosa de necessidade, para não dizer de adição, e assim de mais cobiça, num ciclo cujo fim não difere do causado pela disparidade de valor do trabalho independentemente do quanto dure. E a solução, para muitos decorrência necessária de alguma conflagração final ou catástrofe que determine maneira diversa de distribuir riqueza, está no entanto à distância de um passo único, o de rejeitar de uma vez só e coletivamente as 'facilidades' do uso do dinheiro, mas que não pode ser dado sem longas conversações que, não devido à duração, mas à profundidade que têm de assumir, não vêm atraindo a necessária, urgente consideração.

29 abril 2019

Idiossincrasias monetárias

A gente não gosta muito quando digo que sé é uma sociedade justa e igual o que se deseja ter, a isto não se chegará jamais enquanto estiver presente, atuante, o dinheiro. E tal por uma razão elementar: se a justiça que se imagina obter é fruto da igualdade, o que inclui a distribuição de bens, de riqueza, não faz sentido na natureza do dinheiro ser distribuído de modo igualitário. Pois para que o estorvo de cunhar e administrar uma moeda (que pode ser, inclusive, eletrônica) e distribuí-la igualmente, se é mais prático compartilhar o quanto se produz? Daí se conclui ser próprio do dinheiro, da sua natureza, produzir desigualdade - não há como fazê-lo atuar de modo a produzir o contrário, sem inutilizá-lo, sem lhe suprimir a função de intermediário nas operações de troca de bens.

De modo geral todos percebemos ou sabemos em detalhes dessa lei ou propriedade do universo das finanças, mas temos mantido - por motivos que ignoramos ou não queremos desvendar - o propósito de salvaguardar o uso desse instrumento e disto nascem duas conhecidas ideologias, uma separando justiça de igualdade e em que impera o conceito de merecimento (mérito) e pelo qual seria merecido ou justo possuir-se mais ou menos das riquezas produzidas em comum, e a outra, a ideologia que vê solução em modular ambas as ideias, de justiça e igualdade, pregando a existência de justiças e igualdades maiores e menores.

O sistema do mérito é, dos dois, aquele que certanente merece atenção, não tanto por ser engenhoso, mas pela ameaça que representa, uma vez que culmina necessariamente na ideia de escravidão. Afinal não surpreende observar que 'merece quem faz por onde merecer', de sorte que o demérito pode ser fruto adubado mais no sujeito do que naquele que o está submetendo. Daí a importância de um sistema de valores que, embora chucro, não aparente o ser e assim possa manter apaziguados em seus respectivos deméritos aqueles a quem se escolheu para o papel.

Quanto à possibilidade de sociedades mais ou menos justas e iguais, é preciso perguntar-se primeiro a que corresponderiam, seja no mundo, seja no universo dos conceitos, igualdades, justezas ou justiças maiores e menores. Vivo ansioso por conhecê-las - caso alguém m'as possa apresentar. Entretanto, se não se pode sequer pensar em igualdade e justiça que não sejam exatas, parece compreensível ou razoável que se fale em desigualdades e injustiças maiores e menores, o que em termos sociais significa que os indivíduos em algum desfavor em seus meios toleram as respectivas desigualdades e injustiças, de onde se chega a que subscrevem o sistema de valores arbitrando que possuam menos e, como se mostrou, que suas tolerâncias são o que alimenta tal endosso.

A desigualdade promovida pelo capital só pode ser reconfigurada pela insubordinação, caso em que se permanece cultivando ou cultuando suas regras e os antes favorecidos podem ter suas posições trocadas com as de alguns antigos desfavorecidos. Mas a insubordinação também pode - e deveria - levar a aboli-lo. É sempre uma curiosidade entender por que não tem sido esta uma alternativa mais considerada.

20 abril 2019

In extremis

É bom manter em mente que ao desejar ou 'exigir' 'apenas um pouco, um mínimo' ou mesmo 'o que de direito' relativamente a seja o que for, está-se de fato desejando ou 'exigindo' isto, pouco importa a quantidade ou a razão da necessidade ou da 'exigência', e assim mantendo-se refém do que alimenta o sistema econômico e moral em que se vive faz bom tempo, isto é, a carência, a necessidade, o déficit, a escassez, reais ou fictícios. A única maneira eficiente de se obter o que se quer parece ser essa que,  a propósito, continua sendo a mais simples:  obter!