03 setembro 2017

'Despotismo esclarecido do capital', outrossim dito 'neoliberalismo'

Que a imprensa embrulhe seus asssuntos para que pareçam novidade, é compreensível, pois vive do quanto vende. Já quando intelectuais, em especial os de maior estatura, fazem o mesmo, isto não se justifica com a mesma facilidade, nem se precisam vender seus livros. O desserviço desse gênero de estratêgia é incalculável, e no fundo não esconde a vaidosa pretensão de quem a usa de haver descoberto algo inaudito. Quando seu tema-alvo é a economia, então, a desinformação que promove é por certo a responsável por milênios de cultura da escravidão, em especial a voluntária e ignorante de que o seja, consagrada inclusive nas melhores leis trabalhistas.

Dizer que o 'neoliberalismo' retirou o centro das decisões públicas da esfera governamental e o entregou à esfera do grande capital privado ou que ele põe os trabalhadores uns contra os outros, se não o faz alguém profundamente ingênuo e alheio ao mínimo da História, é atitude de que se deve suspeitar, pois dá a entender que haveria solução para o capitalismo, uma vez desbancada a doutrina neoliberal, e que, consequentemente, já se viveu em alguma fase 'dourada' do sistema capitalista, duas mentiras vergonhosas. E isto, mais do que incompreensível, pode ser imperdoável se é alguém como Chomsky que o diz. Quando na História governos e capital privado não foram um único corpo decidindo os rumos dum país? Do século XIX até meados do seguinte é que se viu uma tendência dando a impressão de resultar em separá-los num futuro não tão imediato. Os movimentos ditos de esquerda, herdeiros da Revolução Francesa (e da Revolução Americana em alguma medida!), decerto tiveram papel nessa sutil e fingida metamorfose das administrações nacionais, mas é provável que tenham contribuído mais com soluções para os entraves de um capitalismo altamente mecanizado (e, portanto, produzindo mais rápidamente, mais amiúde, suas já consagradas crises) do que com as ações que promoviam para desestabilizar esse sistema. O capitalismo cai, e seguidamente, por conta própria, já que vive aos tropeços: desnecessário é empurrá-lo.

O problema da adoção de certas propostas da esquerda pelo capitalismo está em que estas aumentam a frequência em que o poder da população participa das decisões de Estado, tornando este muito mais 'pesado' - ou caro - do que jamais o foi, afetando um tanto mais do que antes, em consequência, as grandes concentrações de riqueza. Não foi à toa, tão-logo caíram alguns dos maiores impérios no cessar-fogo da primeira Grande Guerra e começam as repúblicas resultantes a estudar seus caminhos em direção à democracia (e já desandando tanto para os fascismos quanto para os totalitarismos), que começou a urdir-se essa ideologia, que não passa de elogio do capitalismo em essência ou do manifesto do 'despotismo esclarecido' do capital, em reação ao que seus autores identificavam como o maior dos perigos rondando esse sistema, o comunismo soviético. De início ela nem sequer se chamou de 'neoliberalismo', que era termo designando economia ou mercado livre com Estado forte - o que talvez não passe de uma concepção utópica ou mesmo contraditória, formulada no desespero da crise iniciada em 1929. Poucas décadas à frente é que os seguidores do 'laissez-faire' em economia - à la Hayek e Mises - tomam para sua proposta esse nome, que doravante passa a designar tudo o que com maior ou menor veemência (ou violência) a presença do dinheiro sempre produziu nas sociedades - entre outras maldades, governos em conluio ou totalmente integrados às maiores forças do mercado - e levando ou abrindo espaço para que se leve esse 'princípio' ao paroxismo (e aos paradoxos) de suas últimas consequências. Tudo sempre com muito orgulho, muita vaidade, como se aí se enunciasse lei da Natureza, algo de que até se pode tirar proveito, jamais contrariar.

De novidade, portanto, o ideário neoliberal só nos traz isto: uma justificativa para o que sempre ocorreu em virtude do uso do dinheiro, mas embrulhada no papel lustroso da Ciência Natural. De fato é inevitável que o dinheiro provoque o que lhe é próprio provocar na sociedade, e isto decerto confere um quê de  'naturalismo' à disciplina que o estude, pois estuda o que é natural dele. Entretanto nada indica não haver vida possível num mundo de que outra vez ele esteja ausente. O uso do dinheiro não é inevitável: e é esse o dano maior feito por noticiosos e intelectuais 'novidadeiros', mas equivocados quanto ao que de fato é novo nesse campo, ou somente mal intencionados: desviar a atenção de todos de pensar a vida econômica coletiva sob parâmetros diferentes.