12 outubro 2018

Sobre 'alianças políticas'

Em termos gerais, se bem entendo o ponto 'alianças políticas', tenho a dizer que numa sociedade em que o processo de distribuir riqueza se dá por meio da troca (no caso nosso, troca de seja o que for por dinheiro), a movimentação política não pode se dar segundo princípio diferente do 'toma-lá-dá-cá'. Enfim, se todos negociamos tendo por base a troca, por que e como exigir do profissional da política que negocie em bases diferentes se seu negócio é cumprir as promessas que o elegerão ou elegeram e sua moeda é o voto (o seu, o de seus pares e o dos respectivos eleitores), com que aprovará (ou 'comprará') os projetos que realizam as promessas que fez ao eleitorado ou a possibilidade de trabalhar para os aprovar?

Por que exigir deles que negociem o apoio à aprovação desses projetos em bases exclusivamente morais, se nós, por exemplo, somos capazes de negociar e de fato negociamos em bases diversas com aqueles de quem em termos morais  divergimos mais ou menos sempre que o impõe a circunstância (como a do local de trabalho)? O debate moral tende demasiado ao impasse, que de hábito chamamos de 'polarização', o que ajuda em nada à coesão de grupos, especialmente os de tamanhos dos nossos estados e País, e pode impedir indefinidamente a viabilização do que se projeta. Natural é, sim, que a questão moral oriente a negociação, que estabeleça limites para o que se negocia, mas se ela se impõe além de certo limite, pode não haver acerto algum.

É por aí que vai e sempre foi a chamada 'arte da política' em sociedades do tipo da nossa. Pode não se gostar de como funciona, mas por coerência é preciso desgostar também do fumcionamento como um todo da sociedade em que essa arte existe - e ninguém ou muito pouca gente tem parado o bastante para pensar em mudanças profundas das nossas relações sociais, transformações que bastem para por de lado em definitivo todos esses comportamentos que em termos morais repudiamos. Política, por enquanto, é assim: faça o jogo ou morra na praia.

Por fim, é provável nunca ter havido o tempo em que se constituíam políticos para o papel de heróis ou mártires, esses que em tese morreriam pela causa coletiva que defendem. Mesmo o herói e o mártir lutam e morrem por causas próprias, e o que há de especial nesses indivíduos é o terem feito suas as causas que são de todos, de as terem tornado mais importantes do que os interesses privados que os mantêm vivos. Heróico ou não, mártir ou não, portanto, o político - bem como o juiz etc - só vota - ou decide - em causa própria, porque não há outro mecanismo indutor da vontade em seres vivos do jeito que somos. Reitero: se quer mudar o modo de funcionar nesse âmbito, mude antes as bases em que nos associamos - ou vá, o contrário, ajeitando-se à bagunça como der.

A mentira final

O ultraje gerado pelas notícias falsas ('fake news') deveria ser reconsiderado. É provável que devêssemos dar-nos por contentes.

Mentir para alguém desimportante não faz muito sentido para o mentiroso. A mentira é em muitos sentidos sinal de certo respeito, de respeito certo para com aquele para quem se mente. Se o indivíduo não tem peso algum na vida de outro, a lei do menor esforço ensina a este a vantagem de dar de ombros e seguir adiante sobre a de elaborar argumento falso que convença o primeiro.

O problema de 'os poderes' nos mentirem, portanto, estará em quando pararem de o fazer, coisa para que não deve faltar muito tempo. Em breve, com a tecnologia tornando-a desnecessária, a mão de obra em ociosidade forçosa não deverá mais fazer jus ao esforço de a enganarem, e aí, sim, é preparar-se para mais do que protestar, muito mais. Um dia nos endereçarão a última mentira, a definitiva, e quem a ouvir, acredite ou não nela, jamais escutará seja o que for outra vez.

09 julho 2018

Sejamos precisos:

'Lawfare' em verdade é o uso do aparato legal para fins que não o de fazer justiça, seja no seio próprio da sociedade, seja no terreno da política instirucionalizada ou onde mais for possível isto se praticar. O 'lawfare' ocorre - digamos - desde que o mundo é mundo e seu resultado mais comum é a superlotação de cadeias com condenados sem crimes, sem provas ou com quem sequer teve seu processo julgado: esse é o 'lawfare' 'no atacado', inerente ao sistema de classes de nosso modelo de sociedade. É injusto crer e afirmar que o 'lawfare' só atinge personagens do porte do Lula. Lula é somente vítima insigne dentre as milhares mais recentes, anônimas, feitas todos os dias.

Sem mais, (nem menos)

É preciso insistir: 'igualdade' e 'justiça' são substantivos que, a despeito de abstratos, não adimitem que os modulem em termos de grau. 'Mais' ou 'menos' igualdade ou justiça exprime ausência de sentido, exceto o de 'autodepreciação' - por denotar deprecação e, por conseguinte, submissão, carência de ambas - igualdade e justiça - agravada pela disposição de tolerar a permanência de desigualdade e injustiça, desde que em 'padrões suportáveis', seja isto lá o que for. É claro, falo por mim: observação assim é imprudente se fazer a todo inimigo e não é qualquer amigo que a recebe ou agradeça depois de por obrigação a receber. 

02 junho 2018

Greve

Para quem na vida professa a defesa de direitos, uma vez sendo universal o direito a greve, não há em princípio escolha quanto a apoiar ou não grevistas.  Greves são expressão de insatisfação extrema dos indivíduos com as condições de seus trabalhos e sempre dizem respeito à remuneração, de forma direta, ou indiretamente, como quando as queixas referem insalubridade, por exemplo. À exceção, talvez exclusivamente, do serviço público (e é possível que em nem todos os países), o ato de greve é penoso - ocasiona perdas, danos - para toda a comunidade à volta do serviço suspenso, aí incluídos os grevistas, de modo que hemos de convir em que, por um lado, greves não são convocáveis por ninharias - salvo se por autêntico sado-masoquismo - e, por outro, é monstruosa ('teratológica', diria o rábula) a figura da 'greve ilegal'.  Estas considerações parecem preocupantes, mas desse viés não há alternativa a admitir que não existe serviço essencial cuja supressão seja capaz de lançar na ilegalidade os grevistas, nem limites para os ganhos reivindicados (ainda que pareçam ser ou sejam de fato extorsivos) se se professa respeito incondicional à autodeterminação dos indivíduos e ao seu direito consequente, tácito, de numa sociedade capitalista estimarem como bem entendem a própria força de trabalho.

Afinal o capitalismo jacta-se de suceder nesse o jogo tenso de livre depreciação do trabalho alheio (vulgo 'concorrência') mantendo em perspectiva a iminência da escassez à guisa de pressão tática - e nesse contexto, também temos de admitir, não parece caber outra regra ou lei, muito menos uma justa ou duradoura, senão a da 'fricção' do chamado 'mercado', cuja lógica parece ditar que uma vez respeitado mais esse direito básico, à propriedade, ao restante da sociedade tudo se permite para prover isso de que lhe privaram os grevistas se achar por bem discordar do que pedem ou se considerar insustentável a privação. Isto ocorreria, é claro, num mundo capitalista ideal, isto é, se os governos não interviessem, se observassem ou transigissem com as regras do mercado, instituídos, como foram, para justo ou exclusivamente intermediar as relações no mercado dos indivíduos governados ou, ainda, para fazer valerem os termos dos contratos que de livre vontade firmam eles entre si, sendo supostos conscientes ou advertidos das condições ou regras desse jogo (desvalia do trabalho alheio e perspectiva de  iminente escassez como tática).

Entretanto não é que os governos não caibam na função que lhes foi atribuída de princípio e a excedam, desse modo confrontando o mercado, mas sim que, se deixado ao sabor de suas regras, é inevitável em breve o mercado separar os indivíduos em ao menos dois grupos, um a explorar o trabalho do outro, e em seguida produzir a exacerbação dessa exploração, cujo limite é a extinção - por exaustão, na melhor das hipóteses - dos explorados. Por isso governos tendem a ir além do intermediar contratos nos termos em que foram estabelecidos, passando a interferir, limitando-os, nos termos em que podem estabelecer-se, do contrário não haveria ao fim governados e muito menos mercado algum. Em fim de contas, como se percebe, governos tendem a não transigir com o mercado em tudo que este lhes demanda justo para o protegerem, sendo pouco compreendidos nisto, em primeiro lugar, por não haver fórmula duradoura que garanta condições justas para todas as partes sob contrato dessa natureza e que não fira ou desnature a natureza mesma do mercado (as regras do jogo do capital) e, depois, porque governos são, eles também, atores no mercado para além do papel de mediar a que foram destinados desde quando se criaram, e tal por conta de ser igualmente um serviço a mediação que prestam, passível de remuneração como qualquer trabalho.

Como é fácil deduzir, greves são movimentos legítimos do jogo competitivo inerente à concorrência capitalista e nos termos dele seriam descritíveis como atos de apreciação da própria força de trabalho por uns tantos sujeitos que para o efetivarem depreciam necessária e automaticamente a de uns tantos outros por meio da tática incontornável da escassez (aqui, induzida). Coibirmos com repressão as greves, enquanto Estado, como o somos, via governos é visivelmente impensável se não se quer macular o mercado ou, ainda,  os direitos naturais de cada um e todos os seus participantes: mais do que antidemocrática, é anticapitalista a coibição de greves que, e a despeito de serem jogadas fortes, nisto não diferem da norma no capitalismo. Nada impede, entretanto, que se responda ao movimento grevista com força equivalente ou superior, como já sugerido e exemplificado acima, reiniciando o provimento interrompido por outros meios que não compreendam ameaça, entre outros, ao direito dos grevistas à propriedade, fundamental para haver sentido na trama capitalista. Apoiá-las, portanto, e independentemente de quem as declare, além de mostra de compromisso com direitos fundamentais, é contribuir para a exarcerbação de um conflito ou, em outros, termos, é a atitude esperada no jogo autêntico do mercado, atitude genuinamente capitalística.

Irônico, entretanto, é inteirar-nos de o apoio a greves vir partindo mais naturalmente dos seguidores da cartilha marxista, em torno de que se concentra hoje a maior parte dos que se situam na política à esquerda, explicitamente oposta ao jogo capitalista. A razão disto reside no fato de essa cartilha  predicar a exacerbação das contradições ou conflitos inerentes ao manejo do capital com o propósito de o inviabilizar, descrevendo os passos necessários - e, talvez, perpétuos - da transição da sociedade capitalista para a que em tese seria anarquista (e em essência, como tem mostrado a antropologia, incompatível com o conceito de dinheiro). Em vista de que tais passos têm de ocorrer em vigência do capitalismo, à primeira análise a tática se mostra improcedente, como vem demonstrando a História, uma vez que o capitalismo se nutre do contraditório e essa forma de o confrontar pode não passar de mais uma maneira eficiente de prover lubrificante para o funcionamento de sua engrenagem.

A contradição seminal do capitalismo e da qual as demais derivam é o estabelecimento de valores diferenciados para o que não é passível de valoração por ser precisamente um dos elementos do processo inato de o indivíduo conferir valor a tudo mais, a saber, o trabalho. Em essência 'valor' é o que resulta de espécie de diálogo entre necessidade e trabalho, em que uma induz o outro à ação e este a modera. Uma vez obtido isso de que se necessitou ou havendo desistência de o obter, encerra-se o processo de valorar e o que foi ou seria objeto do trabalho e necessidade volta à condição anterior de algo a que se é indiferente. Ainda que compartilhável por indivíduos de distintos grupos, todo valor é em última análise um juízo privado, intransferível em sua inteiridade, inteiramente dependente das condições pessoais do sujeito, isto é, de como percebe sua necessidade e sua capacidade de agir para satisfazê-la. A rotulação com um cardinal do que não é rotulável desse modo - o trabalho - tem por consequência, dentre as principais, o desvio do juízo de valor de seu objeto por excelência, o mundo, voltando-o para exclusivamente isto mesmo que mede ou confere valor numérico ao trabalho, o dinheiro, doravante tornado objeto primeiro de necessidade e trabalho, afastando do sujeito o mundo.

A interposição do dinheiro na relação do indivíduo com as demais coisas é impositiva, mandatória: dinheiro é a forçosa necessidade a ser satisteita adiante das outras todas, o que em outros termos pode significar obtê-lo, se preciso for, até em detrimento delas próprias, como é o caso, por exemplo, do que acarretam em danos as greves ou da destruição de parte do que se produziu - escassez induzida - para apreciar o valor financeiro da parte sobrante. O trabalho pela obtenção de dinheiro termina por resumir-se ao esforço permanente, inexorável, de apreciação do valor do trabalho ele mesmo, processo fechado num círculo ou, caso o indivíduo suceda - ou falhe - seguida ou permanentemente em apreciar o próprio trabalho, numa espiral cujo diâmetro se amplia ou reduz.

Desse viés compreende-se não haver lugar no capitalismo para senão a desigualdade dos indivíduos, tolerada ou não pelos que têm depreciada a força de trabalho (expressão estritamente sinônima de 'vida'), gerando ambiente de submissão que, se involuntária, está em risco permanente de se transmutar em insubordinação. Enfim, o mundo regido pela ideia de dinheiro é mundo em estado perene de guerra em que toda moderação diplomática, se sucede em prevenir conflagração fatal, na verdade a acirra e protela. É tolice, pois, acreditar que se pode derrotar o dinheiro pela força, em conflitos, visto ser pela força, nos conflitos, que ele se perpetua. Resta, portanto, a solução única de abandoná-lo, se é mesmo o caso de alguém ainda incomodar-se ou se é autêntica a queixa de quem se diz incomodar com seu uso. E quanto a isto pode dizer-se que, a despeito de fenômeno inerente ao capitalismo, a greve parece representar, por ironia, a única esperança de dissipá-lo com algo autenticamente seu, no caso, uma greve do uso do dinheiro, desde que universal e eterna - e que melhor se definiria como sorte de jejum ou de necessária e desejada abstinência, como a do uso de droga pesada.

03 maio 2018

O fim da servidão

Nem todo escravo, é provável, o sabe, mas sua mais poderosa arma, de efeito letal, é a servidão. O desejo todo do senhor resume-se a poupar a própria energia, delegando trabalhos considerados ignóbeis, devido por certo ao desgaste físico, além do moral. Para destruí-lo usaria o escravo a estratégia de servi-lo o melhor possível, na verdade, em excesso, adiantar-se às suas necessidades, mantendo-o no limite ante à paralisação, se não paralisado. A plena satisfação acompanhada de inteira boa vontade é como droga: cria dependentes e em doses maciças mata. O indivíduo imóvel, paralisado, é indivíduo morto.

'O criado', de Losey, é no cinema exemplo da tática: quando dá por si, o senhor se vê enredado na teia de lascívia do servidor, só lhe restando sucumbir. A mesma técnica é empregada por grandes indústrias e distribuidoras, além dos bancos e, em suma, por toda uma horda de serviçais interessados somente em manter as mãos nos bolsos do cliente. Todos querem servi-lo - e de fato o servem - para em princípio torná-lo dependente do serviço oferecido,  pois não há sentido aqui em matá-lo com excesso de conforto. Mas é fatal errarem na mão, dada a abundância do que ofertam, e mais cedo ou mais tarde lhe retirarem a inteira capacidade de autodeterminar-se, com o mundo ao alcance indolente do olhar.

Este é o plano até a maquinaria aprender todas as habilidades do homem, quando deixa de ter sentido permitir de favor que trabalhe lado a lado com ela, como ainda ocorre. Passado esse período, terá alguma função só o mecânico, enquanto as impressoras não  se habilitam a produzir de tudo, decerto tornando-se as únicas máquinas necessárias. Então não haverá mais razão de existir senão quem as use. Se já não estiverem suprimidos por fome, guerras e pestilências de toda ordem, os serviçais inutilizados sobrevivendo à primeira leva de mecanização total perecerão junto aos mecânicos, na certa pulverizados por robôs ou dispositivos nos chips implantados ao nascerem. Assim, após o esgotamento das etapas todas do progresso, a Terra verá cumprida a promessa de ser salva, gravada em cinco línguas em monolitos encravados no meio dos EUA,  tornando-se pela prineira vez o Paraíso dos mitos, habitado pelos quinhentos milhões que o mereceram.

29 abril 2018

Mais do de sempre

Toda crítica ao capitalismo é bem-vinda? Talvez não. Por quê? Ora, porque a quase totalidade delas presta o inestimável desserviço de construir-se sobre o pressuposto de ser pensável uma economia onde o dinheiro continue fluindo sem que isto sequer se pareça com o capitalismo. Ledo, imperdoável equívoco. Mostra de o quanto o pensamento econômico dominante espalha sua influência, infiltrando-se nos meios que o opõem como a larva hibernada e sempre pronta a assumir seu papel biológico se a espécie de que é parte se vir porventura ameaçada de extinção.

O capitalismo tem sido insuperável nessa tática de sobrevivência, vide o fim de movimentos como o 'hippie', que passou a marca comprável em boutiques e agências de viagem oferecendo roupas, acessórios e planos de férias, propiciando a experiência 'libertadora' do hippismo a quem pudesse arcar com tanto. A crença de o uso do dinheiro ser regulável de modo a proporcionar um mundo 'mais igual' - seja qual for o sentido desta expressão - é sinal da péssima compreensão do que por natureza seja de fato o dinheiro e que regulá-lo tendo por limite - óbvio - a igualdade (a real, estrita) equivale a inutilizá-lo, a transformá-lo numa tola formalidade cuja manutenção teria custo incalculavelmente maior do que os 'benefícios': a única regra - ou lei -tolerada (ou, antes, exigida, imposta) pelo dinheiro é a da soberania do acordo das partes numa transação comercial, cabendo ao Estado (no caso, este Estado de que fazemos parte, urdido por e para o comércio) zelar para que se respeitem os acordos firmados, sejam quais forem os seus termos, e não o estabelecimento de limites para acordos futuros. Um pouco de História, ainda que em 'farrapos', ajuda a compreender isso.

É esta a base da autorregulação do mercado, que nada promete quanto a equidade na distribuição de riqueza. Equidade, quando muito, é aí tolerada no que toca a oportunidade de o indivíduo participar do jogo do capital, em que é triado logo à entrada se incapaz de sobreviver aos 'livres' acordos cuja mecânica é por inteiro fundada na ideia de carência, mormente a induzida, forjada de modo que os termos contratados sejam favoráveis à parte indutora da necessidade e forcem a anuência da outra. A 'soma-zero' - operação comercial sem vantagem de alguém - nunca pode ser objetivo no 'dinheirismo' (ou capitalismo), senão provisoriamente, à guisa de tática visando vantagens posteriores: uma economia com distribuição equânime de riquezas, por seja qual for o método, é profundamente desinteressante - além de contraproducente - do ponto de vista do dinheiro e o contínuo resultado 'soma-zero' das operações comerciais equivaleria a insustentável impasse militar diante do front, em que se investiu demasiado para serem tolerados adiamentos da perspectiva de vencer.

Mas não nos precipitemos em concluir, de modo semelhante ao que concluem os ingênuos críticos do capitalismo, que o dinheiro é criação daquela malignidade suposta inerir ao humano: outra sólida tolice. O dinheiro é ideia urdida ao longo de milênios, assim sugere a História, enquanto solução para o escambo efetivar-se sempre, para haver comércio ininterrupto mesmo quando o produto interessando a uma das partes numa transação comercial não estivesse disponível: assim como o escambo, que é a troca visando tacitamente a equivalência ('soma-zero') de riquezas, o dinheiro se estabelece sobre a perspectiva da carência, da indisponibilidade de algo. Qual outra razão, além da falta daquilo de que se necessita, levaria comunidades antes compartindo suas produções a medir o que passam a trocar entre si (escambo) e a garantir a realização dessas trocas mesmo quando seriam potencialmente frustradas (uso do dinheiro)? Escambo e dinheiro consistiram em respostas funcionais - e positivas, portanto - a circunstâncias adversas, mas terminaram mostrando-se, assim como outras tantas criações humanas, mais danosos do que o desejado, permanecendo em uso por estes milhares de anos em virtude da relativa praticidade e, principalmente, do hábito.

Escambo e dinheiro são o que são, são como são, funcionam como têm de funcionar. É para isto que a parca sabedoria do 'despotismo esclarecido' em que consiste a doutrina neoliberal tenta com grande sinceridade alertar: não há outra maneira de usar o dinheiro senão o deixar a cargo de quem o usa fazer dele o que bem entenderem, desde que sob a guarida de quem seja capaz de garantir o cumprimento dos termos desses entendimentos, no caso, o mecanismo de governo deste Estado como o conhecemos. Com empenho ainda maior do que o de justificar o uso do dinheiro, o neoliberalismo se encarrega de garantir o funcionamento da economia que ele move, demonstrando, por um lado, o quanto crê em sua eficácia e, por outro, o volume do que conhece a respeito desse signo numérico de valor, tamanho tem sido seu investimento em desinformar todos sobre a matéria: uma vez entendido haver vida econômica para além da contagem de moeda, sem hesitar o público em massa daria as costas para o dinheiro e, em consequência, para o seu efeito principal e mais nefasto, a desvalia relativa de trabalho e necessidade humanas, que em verdade é condição sine qua non da ocorrência do escambo.

E enquanto houver massa crítica convencida da imprescindibilidade da intermediação monetária na circulação de riqueza este sistema continuará tendo o fôlego habitual, sendo aqui coibido por uma lei mais intolerante e logo adiante achando um modo de compensar o que esta lhe fez perder. O dinheiro corre para onde se produz o de que mais se necessita e aí tende a acumular-se inevitável e necessariamente: produzir para uma demanda avantajada tem custos de hábito altos, sendo preciso tanto honrá-los como demonstrar capacidade de o fazer, de que dá conta o acúmulo de riqueza que, entretanto, só se sustenta enquanto houver quem aquiesça à desvalia da própria força produtiva e à hipertrofia do próprio desejo de consumir. Em uma palavra, é perda de tempo e de coerência protestar contra o acosso do dinheiro sem possuir sérias intenções de ao menos pensar em como livrar-se dele, o que não se consegue sem buscar conhecê-lo para além da enganadora teoria econômica dominante. Antes de uma disciplina exprimível em números a economia é formalização de uma moral (no sentido de 'hábito'), uma nascida da ideia de escassez (real e, principalmente, induzida) e orientada por ela para produzir miséria humana em meio ao que em realidade é fartura. É evidente que há o capitalista em crise aguda de insanidade (vez que a moral do capital é insanidade crônica), mas o principal artífice dessa miséria é precisamente sua vítima constante, porque a alimenta com o desvalor de si mesma, com a mercantilização da própria força vital, manifesta na necessidade que tem e no trabalho a ser despendido para satisfazê-la.

14 abril 2018

Balzaquianas Brasileiras para a Democracia Indireta

'Democracia Representativa' - o nome diz tudo: grande peça!  À primeira vista talento inato para o drama, aquele  com tintas de épico, o tempo revelaria seu pendor verdadeiro: a ambição secreta de protagonizar farsas, as do gênero revista, em que satisfaria de multidões os anseios mais recônditos. Sucesso meteórico e permanente, viu-se obrigada a mexer no preço do ingresso quando as filas davam nó na cidade, a título de prover o conforto na plateia. Vê-la em cena, hoje, é para quem pode.

Foi como ganhou fama de cortesã, daquelas de alta rotatividade. Mas como para todos os fins é atriz ainda, por questão de respeito e em proveito próprio a clientela impôs ao assunto tratamento circunspecto, designando-o 'alternância', doravante cobrada de todos com rigor absoluto, mas cumprida mormente à base de trapaça, nem sempre em grande estilo, tolerada entretanto com o melhor da hipocrisia.

Disso resulta fenômeno inusitado, intensa movimentação em todo e qualquer recanto da casa onde se julga haver a mais pífia privacidade, dos lavatórios sempre lotados aos desvãos sombrios no foyer ao lado das escadas, sem falar nos corredores e em camarotes e frisas a cortinas cerradas, para onde acorre a assistência, seja em grupelhos, seja induvidualnente, a manejar qual recurso for de maquiagem, máscaras, todo adereço ou indumentária inusitados e à disposição para a doce vanglória de poder ocupar a cena ao lado da estrela por quaisquer dois ou três esquetes consecutivos, ou mesmo para conservar o assento de uma sessão para a seguinte. Na fila de espera o populacho resmunga, esbraveja, vocifera, isto não querendo dizer que não compreenda a resistência geral para deixar o teatro ao fim dos espetáculos, prática consabida e transigida em base universal como é, de modo que a despeito dos sinais de certo cansaço, desenvolveu a Democracia Representativa tolerância inesgotável para os tipos mais truculentos e nada discretos com quem sob pressão constante é frequente ter de contracenar.

Mas não se avance que o sarcasmo e a leviandade que entretêm gerações se tenham por acaso lhe colado à cara, por assim dizer. Não. Mantém-se o mais estritamente possível nos limites da profissão, assim dissimulando com eficiência razoável seu potencial ainda latente - apesar da meia-idade - para apaixonar-se, a um só tempo desejado e temidos por quem a cerca. É coisa de uma vez na vida e que dá motivo para revoluções se transparecida, em particular se o felizardo é recém-chegado e, para piorar, pobretão. Em tais circunstâncias vêm à luz suas insuspeitas fragilidades, como seria de esperar, quando está sujeita a perder cacos, pular texto, marcações, tropeçar no ponto, a cabeça longe a tramar maneiras de atrair ou de manter ao lado o escolhido, mesmo quando cadeiras começam a ser rasgadas, programas, picados e o rumor crescente se avizinha da vaia, alvoroço de hábito durando não mais de dois atos seguidos, quando então é invadido o palco e o par, separado, talvez para todo o sempre.

É nessas circunstâncias ásperas que de monossílabos rosnados entre dentes à mostra a ela é dado conhecer o que se omite dos relatos populares de sua história, além de um tanto mais que a contraria: seria antes bastarda dum Aristocratismo Monocrático que descendente tardia da mítica Democracia Direta, como alardeado por aí, que foi assim chamada para a distinguirem de si desde que sucedeu na carreira teatral e cujo nome correto é 'Democracia', somente - "A verdadeira", sussurram-lhe ao ouvido quando acham por bem humilhá-la. De todo modo, pensa com tristeza para os próprios botões, 'Representativa' ou 'Indireta' são epítetos jamais envergados por ela com conforto, e o pendor que têm para o pejorativo é provável ter sido determinante para que do épico tenha descido à revista e daí à involuntária cortesania, como se fora sempre ou procurasse ser eco, embora vazio, duma ancestral postiça e, ademais, de existência quiçá improvável ou impossível, se confiável é tudo quanto nesses momentos de ignomínia a ira alheia lhe diz. Tanto que começa a apreciar a eventualidade de sem constrangimentos adotar nome bombástico e mais condizente com quem de fato é (e a despeito da pecha da bastardia), o de 'Democracia Oligárquica' ou 'Oligarquia Democrática', a escolha de um dos quais cogita de realizar em concurso que cinicamente confiará a sufrágio universal.

Vinganças à parte, a melancolia dessa alma feminina salta aos olhos depois de reconduzida à função habitual. É dum suspiro fingindo-se de fingido, da clássica pausa para induzir risada ou ovação que se depreendem os amores impedidos, presos, exilados, ou coisa pior, a tragédia de ser ilusão manipuladora e manipulada de quem precisa desse engodo para dar interesse à própria vida. Portanto aproximem-se, senhoras e senhores, não deixem de ver de perto esse espetáculo permanente, enquanto ainda em cartaz; não percam a oportunidade de estar em cena com a última das deusas. A qualquer um é permitido entrar,  ou assim se diz; é claro, desde que possa!

13 abril 2018

O pecado é o mercado

Lê-se no título da matéria: "Jesus não morreu por 'nossos pecados', mas sim por enfrentar o interesse, a conveniência e a cobiça". Não seriam uns as outras três coisas?

Sim, Cristo morreu por tudo isso: isso com que temos concordado, mormente de modo tácito, e contra que até nos insurgimos, mas somente quando alijados da possibilidade de o praticarmos, para que o pratiquemos. O que mais isto seria além de 'os pecados nossos de todos os dias'?

Sempre lembro aos 'cristãos': até onde recordo, Cristo jamais perdeu a linha, exceto uma única vez, e não com o demônio, que o assediou no deserto, nem mesmo com Judas, que vendeu um beijo e por isso matou-se, mas com a presença, na casa d'O Pai, do que julgou merecer toda sua ira em violência física, o 'mercado'.

O que mais o mercado é além do exercício mórbido de desmerecimento recíproco do que possuem de único os indivíduos para sobreviverem neste mundo, a capacidade para o trabalho? A 'pechincha', que até nos diverte, é a semente de toda a discórdia num contrato social permanentemente orientado para seu potencial extremo, o da guerra.

No mito - ou história - cristão, se revoltoso como Barrabás, Jesus teria ido um tanto além de apenas denunciar a exploração pelo homem do trabalho do homem, apontando o que a causa, seu instrumento essencial, esse cujo poder de sedução tem sido o motor do conflito permanente em nome de o possuirmos, de o controlarmos sob a alegação vazia, a promessa enganadora de sermos capazes de retirar de sua natureza malsã algum bom fim.

Foi morto sob a acusação de se dizer 'Filho de Deus', que para bom entendedor era como se perguntasse: "Se eu sou, como não o seria você também?" Morreu por demonstrar a 'Igualdade' com tratar a todos por 'irmãos', aplainando os aclives do poder sobre os vales dos despossuídos.

Pregou o compartilhamento e a dádiva, e com elas o abandono da vã tentativa de medir o trabalho humano com o fim de negociá-lo. Com o escândalo no templo teatralizou a ira justa contra o cinismo de fazer medrarem as raízes de nossas piores diferenças onde habita a razão de sermos todos um só.

São mil, novecentos e setenta e cinco anos de pura zombaria com o terem imolado. Contam-se nos dedos os que entenderam as lições que deixou.

23 março 2018

Em torno do 'Estado' que o neoliberalismo quer

Enquanto doutrina sócio econômica o capitalismo dá sinais de haver chegado a um modo idiossincrático de despotismo esclarecido após a longa elaboração da ideologia neoliberal. Os traços genéricos deste não discrepam dos normalmente atribuídos ao despotismo esclarecido político, que em linhas gerais se resumem a um centro de poder absoluto atuando de modo menos desfavorável em relação ao povo do que o esperado do déspota típico. De modo que o neoliberalismo não pende mais, como a doutrina capitalista tradicional, para justificar ou mesmo dissimular os traços do uso do dinheiro que inevitável e tragicamente resultam em danos para o tecido social (e conflitam com sistemas éticos pré- ou pós-iluministas), passando a fazer, ao contrário, sua apologia, confiado em que duma perpectiva mais ampla e em médio ou longo prazo levariam a sociedade a algo preconizado por socialismos 'não-radicais' ou muito próximo disto. A conhecida metáfora do 'bolo', que precisa crescer antes de ser 'dividido', é emblemática da fé neoliberal.

Daí aquela regrinha banal embutida na doutrinação despótico-esclarecida dos neoliberais: dinheiro bom é dinheiro desregulado, movendo-se ao sabor de acordos (contratos), estes, sim, passíveis de supervisão pelo Estado, de modo a garantir que se cumpram, e só. O contrário disto - o controle da circulação do dinheiro com regras (leis) que na verdade prescrevem o conteúdo do contratado, isto é, que ditam ou precedem os acordos - freia o 'mercado' e tem por limite máximo fazer dele, dinheiro, brinquedo tolo, mera formalidade em que os atores todos são poupados de surpresas ou sobressaltos nas transações que realizam, uma vez que conhecem em detalhe cada passo do processo econômico desde, por exemplo, o recebimento de uma remuneração até seu esgotamento no que invariavelmente poderão ou terão de comprar,  ciclo que se reinicia a cada remuneração nova, para sempre. Num cenário como este o conceito de dinheiro teria extirpada sua essência competitiva, estaria 'purificado' - por assim dizer - dos perigos de sua natureza lúdica e, o pior, seu uso carregaria em regime permanente uma tensão, uma vez que o potencial para competir permanece latente, coibido por força externa, a da lei de um 'Estado forte' (ou autoritário).

Por natureza própria o dinheiro é jogo de azar e a moeda o maço de cartas com que é jogado, justo como o pôquer, que com efeito o celebra na permissão do blefe, jamais a do roubo (é natural), enquanto o Estado tem a função do xerife, de prevenir quando possível o confronto dos jogadores num lance fatal - para si e quem estiver ao redor. É em nome destes que cercam o núcleo potencialmente perigoso e explosivo da jogatina que a lei usa justificar sua intervenção, cujo limite, esgotados os recursos para manter num mínimo a ordem tolerável, é o da proibição total da jogata, se é que, no caso do pôquer, há sentido em haver os estágios intermediários até ser proibido de uma vez e nos quais se sugeririam alterações das regras do jogo que, evidentemente, o desfigurariam, caso este das interferências do Estado no universo da finança, que redundam nos consequentes protestos dos doutrinadores neoliberais.

O neoliberalismo, é bem provável, não existiria, não fossem as investidas críticas sobre o papel do Estado e do dinheiro nas disfunções da sociedade empreendidas pelas doutrinas que se seguiram à Revolução Francesa e como um todo foram adjetivadas 'de esquerda' ou 'esquerdistas'. O pensamento neoliberal se constitui enquanto resposta às soluções radicais da esquerda para o saneanento da sociedade, que têm por fundamento a identificação de Estado e dinheiro como o cerne da disfunção social, confluindo para a meta de eliminar ambos.

Dado curioso é essa habilidade de absorver traços seminais do ideal esquerdista desenvolvida pelos teóricos neoliberais, como o 'anti-estatismo' e a garantia de se produzir uma distribuição equânime ou, no mínimo, satisfatória da riqueza, mesmo sem a necessária eliminação do conceito de dinheiro constante de propostas puristas da esquerda como os modelos de anarquismo. Esse aspecto, que do viés anarquista não passaria de uma tola e mal ajambrada amontoação de conceitos, é o que coloca o neoliberalismo em rota de colisão frontal com o comunismo que, a despeito das idas e vindas quanto a o quê o termo deva significar, pode ser entendido como a receita compreendendo Estado forte no controle da distribuição de riqueza intermediada pelo dinheiro à guisa de fase transitória na direção de extinguir as máquinas governamental e financeira, ou seja, na direção do Estado anarquista. O conceito de 'anarco-capitalismo', mais do que ultrajante do viés anarquista, não é senão a exposição do consequente limite da rejeição ao Estado constante da ideia de Estado mínimo dos neoliberais.

Todo este quadro trai uma multissecular controvérsia em torno da noção de Estado desde que, de Hobbes a Rousseau, passando por Locke, o Iluminismo se enamorou da ideia de 'contrato social' e a identificou com a de 'Estado-ele-mesmo' ou com o que está no seu cerne. De inconveniente na noção iluminista de contrato social é a crença de a grei humana ter chegado de comum acordo ao estabelecimento da governança, o que é verossímil, embora não o seja o motivo que presumidamente a levou a isso, 'pormenor' altamente discutível, se não de todo falso: a submissão a um governo (ou liderança) seria a única ou melhor forma de prevenir o pendor inerente aos indivíduos em associações para a destruição recíproca! Os partidários do Estado-enquanto-contrato-social não raro lançaram (e ainda lançam) mão de por em paralelo as condições gregárias nossas e as de outras espécies à guisa de demonstrar a necessária presença do líder estabilizador para a coesão sustentável das sociedades, embora o passo das descobertas em áreas como a do comportamento e psicologia animais, na zoologia, da arqueologia, da antropologia e da história venham apondo dúvidas sérias, no mínimo, a essa concepção de sociedade.

No entanto a ideia de 'contrato social' traz em si a 'revelação' de que num grupo de indivíduos quaisquer, não importa o que se passe, tudo deriva necessariamente da anuência de seus membros, isto é, a 'revelação' da natureza democrática de modalidade direta inerente à dinâmica interna das greis. Foi desta derivação da concepção de 'contrato social' que surgiram tanto reações como a da sentença "o Estado sou eu", atrevida e atribuída ao 'absoluto' Luís XIV, quanto o resultado democrático da Revolução Americana, bem como o que motivou os quase esquecidos revoltosos no Haiti. Além disso hoje começam também a firmar-se, via zoologia, arqueologia e antropologia, visões de o funcionamento das greis animais em geral aproximar-se mais dum anarquismo em que entretanto se toleram comportamentos como a poligamia conquistada em disputas (ou jogos) que podem envolver até a violência, e de nós humanos termos 'escolhido' organizar-nos em torno de lideranças muito recentemente, sem que isto tenha advindo do propósito de refrear um suposto pendor para a destruição recíproca, uma vez não haver nessas sociedade pré-históricas sinais de conflitos que sequer ameaçassem, muito menos tenham desfeito os liames sociais.

Essa nova e não deliberadamente narrada história, feita dos resíduos deixados pela humanidade de como ela se constituía enquanto organismo social, sugere que o verdadeiro 'elo perdido' da sociologia (e da economia política) seriam os motivos a nos terem levado do compartilhamento de riquezas à troca delas por equivalência do trabalho investido em produzi-las, ou escambo, em que está implícito o estabelecimento ou a atribuição de valores para os ítens trocados, assim determinando o aparecimento do conceito de dinheiro. De modo geral assume-se que essa noção muito simples, além de verdadeiramente engenhosa e revolucionária,  surgiu enquanto solução para certos entraves do escambo, notadamente a ausência de certo produto interessando a pelo menos uma das partes, circunstância potencialmente paralisante para as negociações. A eleição de um dos artigos intercambiados para a função de intermediar o intercâmbio dos demais, além de prevenir a paralisação dos negócios, mostrou-se utilíssima no processo de atribuição de valor ao negociado e evoluiu no sentido de atingir a portabilidade ideal, bem como a garantia de ser respeitado o valor que representava, obtida com a cunhagem da moeda garantida por um Estado.

O mencionado 'elo perdido' da transformação de uma sociedade que compartilha em outra que pratica o escambo e, em consequência, descobre o dinheiro é importante para compreender-se também a estrutura deste Estado sob que ainda se vive, muito embora haja bastante consenso ao redor de ele ter iniciado nas primeiras cidades-estado, que por sua vez nasceram dos que teriam sido pontos de encontro de quem dispunha de algo a ser trocado, tornados em seguida entrepostos capazes de inclusive permitir a estada dos negociantes, atingindo finalmente a condição de cidades. Nada impede de considerar-se que ao menos umas tantas cidades-estado tenham surgido diretamente de assentamentos agrícolas que centralizassem o comércio em certa região, mas a estrutura que se estabeleceria em todas elas sugere fortemente a ocorrência do escambo e a necessidade de uma intermediação progressivamente mais forte nas querelas que suscitasse, a qual derivou, por sua vez, na centralização da economia por meio de instrumentos coercitivos como leis, braço armado do Estado e, finalmente, moeda. Em termos estruturais este Estado sob que vivemos descende imediatamente da 'mentalidade' do escambo ou, mais provavelmente, dessa modalidade do escambo aparecida com a descoberta do dinheiro, e se não isso, ao menos ele evoluiu em paralelo e em conivência com todas as idiossincrasias do universo financeiro.

De curioso, irônico e paradoxal em todo esse processo com respeito à ideologia neoliberal em sua 'guerra santa' contra o 'Estado' é constatar que não passa de reencenação do tema batido do criador voltanto-se contra a criatura que o engole, além de evocação do que seria espécie de 'era de ouro' em que o Estado presumivelmente não excedia a função de mediador moral dos contratos que sobre quaisquer bases as partes em escambo estabelecessem, ou seja, sorte de 'fundamentalismo' em economia. Não bastasse o estorvo de julgar tendo alicerce assim instável, uma mediação - por assim dizer - não-coercitiva não teria como fazer valer em bases exclusivamente morais o seu julgamento, uma vez que poderia haver motivos de sobra para uma ou ambas as partes o rejeitarem: nada de mais consequente, pois, que o mediador evoluísse para estabelecer ele mesmo os princípios a partir de que julgar, bem como os meios mais 'convincentes' de garantir a 'anuência' dos contratados a seu julgamento, pois afinal estava em jogo o seu ganha-pão, vez que não é inverossímil concluir daí que a noção de imposto nasceu 'pronta', do direito que o Estado teria ao pagamento por seu difícil e 'delicado' trabalho de mediador.

No fundo todo doutrinador do neoliberalismo sabe que na ausência do 'Estado' (nome que insiste em dar a 'estrutura de governo'ou 'govenança') forte a mentalidade ainda hoje predominante, de não haver alternativa para o uso do dinheiro, é o potencial fomentador, sim, de toda sorte de conflito, incluindo a guerra, sabendo também que 'anarco-capitalismo' é ideia insustentável, se não descrição de fato inócua, embora hiperbólica, da estrutura desse nosso Estado que em fim de contas não é senão um dentre os partícipes do jogo do dinheiro em larga escala ou, ainda, a cadeira cobiçada dessa brincadeira em que somente um desses grandes jogadores pode sentar-se por vez. Como todo despotismo esclarecido o neoliberalismo é uma coleção de artifícios populistas, isto é, ideologia (ou propaganda), principalmente, e certas deliberações para o 'mercado' visando manter a massa humana em sua rotina ignorante de dirigir o fluxo de distribuição de riqueza a uma fração da população, porque os seus ideólogos sabem também inexistir possibilidade real de o conceito de dinheiro promover senão discrepâncias econômicas, algumas até toleráveis, salvo se submetido a severa regulação, o que, como se percebe, o inutiliza ou, o que dá no mesmo, o transforma num brinquedo sem graça.

21 março 2018

Húbris e anarquismo

Trabalho imprescindível para todos os que precisam orientar no tempo suas 'vocações' para a esquerda, 'Anarquismo', de G. Woodcock (poeta canadense e pensador anarquista do século passado), vai muito além de reproduzir cronologia e expor teoria. Ali o simpatizante do hoje popular marxismo pode perceber como e por que esse sistema aparece de uma linha já solidificada de propostas de superação desse Estado-como-o-conhecemos, iniciada com o 'Justiça Política' de Godwin e que só após Proudhon foi chamada de 'anarquista'.

'Anarquismo' foi impresso em 1962 e em vista do seu escopo é provável que Woodcock o tenha planejado desde os anos 50, período de florescimento do 'sonho americano' e sua ambição de constituir uma 'classe média' cujas condições materiais fariam corar de vergonha ou inveja o projeto espartano de proletariado dos soviéticos. Na introdução, em que se contrastam apelos e reticências do anarquismo em geral, é possível entrever a sugestão de que a hipótese de a proposta materialista dos americanos ser empreendida por um Estado proletário não consiste em delineamento inverossímil do que sonhava Marx.

O marxismo estava seguro de que sua conquista da máquina de governo já alimentada pela produção em escala industrial produziria, se convenientemente admimistrada, a exuberância que o anarquista descartava por princípio e não sem motivo. Logo após publicar 'Justiça Política', por exemplo, Godwin foi acusado por Malthus de propor sistema de prosperidade que levaria a humanidade a exacerbar sua tendência para superar em população a capacidade de a Terra lhe prover subsistência, assim expondo-se a calamidades intermitentes por cujo intermédio o habitat restauraria o próprio equilíbrio. A resposta de Godwin enfatiza sua certeza de o progresso ininterrupto da sociedade anarquista ser função do constante aperfeiçoamento de conhecimento e uso da razão, franqueado pelo fim da coerção dos governos.

Mostra do quanto em geral temos em conta o nosso potencial mental enquanto agente maior de nossa sobrevivência, o argumento de Godwin permanece semi-ignorado até o golpe que supostamente o aniquilaria, vindo da importância conferida à competição no Evolucionismo, apesar de Darwin ter insistido posterirormente para que também não se desdenhasse o papel evidente e seminal da cooperação entre indivíduos de um mesmo grupo. Geógrafo respeitado que por anos estudou habitats siberianos, Kropotkin dará ao problema resposta definitiva no início do século passado, mostrando aos 'darwinistas sociais' o óbvio, isto é, o quão incompreensível seria a formação de greis se servisse somente para o confronto e a destruição recíproca dos indivíduos, ou o quão disfuncional seria a natureza se entre as diferentes espécies a disputa sobrepujasse a boa-vizinhança. De qualquer modo o anarquismo de viés pacifista já havia optado bem antes por conservar sua confiança na capacidade de o discernimento humano manter com o meio-ambiente diálogo de alto nível. Ao marxismo, que via nisso a desculpa dos anarquistas para proporem 'socialização da pobreza', por questão de bom senso é atribuível a mesma confiança, bem como outra, mas insustentável, na capacidade de o Planeta sobreviver à nossa húbris - a única que nos é possível e igualmente cultivada, nutrida e acariciada pelo inimigo declarado do marxismo (e do anarquismo), o capitalismo.

Ao concluir a escrita de 'Anarquismo' Woodcock na certa não previa a sobrevida da classe 'única' soviética que, a despeito da zombaria 'ocidental', alimentaria por ainda trinta anos o estado de espírito predileto de seu rival maior, o de permanente alarme.  Quanto ao 'sonho americano', não se imaginava que passasse lentamente ao estado de pesadelo interminável ao retornar de sua primeira viagem à Lua ou de uma guerra que, coisa de sonho, achou por bem perder. Ainda assim foi espalhado mundo a fora, em versão simplificada ou adulterada, mas nem por isso sustentável sem que contemos com o mínimo de três ou cinco planetas para que todos o sonhemos sem sobressaltos.

Resultado: Malthus, ao que parece, não teve ainda o seu ponto provado, na certa por culpa da 'mão invisível', de Smith, que tem cuidado de manter viva e miserável, além de crescente, a porção maior da espécie humana, desse modo retardando o colapso final do meio-ambiente. Até o presente a humanidade tem evitado reconhecer-se inepta com a atribuição de todas as suas misérias ao caos comportamental dum mercado a que o uso do dinheiro impõe a paradoxal condição de ser 'livre'. Do seu lado o capitalismo financiou a demonstração de o luxo não ser mesmo coisa para todos, o contrário do que ele, o marxismo e um certo poeta acreditam. E apesar de 'franciscano' (ou 'estóico'), o projeto anarquista ainda não foi descartado com a proliferação de marxistas e dos moderados socialistas, embora hoje atue sob disfarces que visam distanciá-lo de soluções violentas que em seu nome o desespero de uns tantos oprimidos adotou, também conhecidas por 'terrorismo'.

Em essência ou congenitamente o anarquismo não pode ser senão pacifismo, embora devido às soluções múltiplas que se propuseram para aviar sua implementação - etre elas o marxismo - tenha-se tornado por vezes confuso para quem alimenta a urgência justa de ver-se livre de coações que, não bastasse o serem violência, são inúteis, improdutivas. Por isso ele tem circulado o mundo sem quase anunciar o próprio nome e vestindo-se, por exemplo, com a exuberância sugerida nas ideias do genial Jacque Fresco, as de uma sociedade inteiramente apoiada na mecanização e no compartilhamento da produção, além de orientada exclusivamente pelo método científico. À parte o risco de tornar-se uma República platônica (ou até um Estado marxista), a proposta de Fresco - Projeto Vênus - mantém os mesmos traços da confiança depositada por Godwin e Kropotkin no potencial da mente humana: sem opressão seríamos todos sábios (ou tenderíamos vertiginosamente para o ser).

Em certo contraste com o Projeto Vênus, que influenciou iniciativas como o Movimento Zeitgeist de Peter Joseph, há o Planeta Ubuntu, proposta sul-africana perfilada com o sentido dado por Kropotkin ao problemático conceito de 'propaganda do dever', contrário ao que lhe dava quem compreendia o 'dever' como supressão do Estado opressor por quaisquer meios, incluindo os violentos e mesmo quando não necessários. Na visão de Kropotkin a ação a ser propagada é a construtiva, ou seja, a que demonstra em pura prática, sem consistir em prenúncio do 'ghandismo', a inutilidade de manter-se a adesão ao modelo corrente de sociedade. É isto o que empreende o Planeta Ubuntu - e com sucesso, segundo anuncia - ao convidar indivíduos em certas comunidades pequenas a oferecerem semanalmente parte do seu trabalho (cerca de três horas) para em cooperação produzirem o que o sistema social defeituoso em que vivemos é incapaz. Godwin e Kropotkin já haviam tratado do quão eficiente e maior seria nossa produtividade se orientada pelo objetivo fundamental de satisfazer necessidades, exceto a de gerar dinheiro. Além do mais é preciso gerar exemplo, demonstrar que e como é possível um mundo sem dinheiro.

A leitura de 'Anarquismo' de Woodcock oferece oportunidade para refletir-se sobre a história persistentemente trágica da presença no mundo dos ideais de esquerda, que não se inicia, mas se torna mais intensa, com a Revolução Francesa. Ali se percebe que o conceito de húbris, em princípio responsável pelo desdém do marxismo pelas ambições do anarquismo, deriva na verdade da pouca confiança de alguns pensadores da esquerda no potencial do intelecto humano enquanto traço universal da espécie, o que se reflete naturalmente sobre eles próprios e termina por induzi-los a justificarem a adoção, em suas estratégias de combate à opressão, da opressão ela mesma ou dos comportamentos e ideias que a determinam no sistema opressivo que acreditam combater. Em face do anarquismo o marxismo pode ser definido como artifício do desespero, emulação por certo irrefletida e infernal, mas bem-intencionada, do quanto ambos mais desprezam.

Woodcock concentra-se mais na dimensão política, essa de que por vezes se presume ser possível falar sem o concurso ostensivo da dimensão econômica, hipótese que a exaustiva e obsessiva descrição feita por Marx da dinâmica do 'capital' descarta. Entretanto a compreensão da economia falha em prover o suficiente para a sociedade metamorfosear-se sem que uma terceira dimensão, a intelectiva, seja aplicada à identificação e à análise da raiz evidente de nosso purgatório social e assim construir o sentimento indissolvível de vexame e repúdio por permanecermos há tanto tempo nele. A certeza de ser a noção de dinheiro a responsável por todas as nossas misérias, longe de consensual, tem sido também inefetiva no provimento do necessário para nos envergonharmos da trágica distribuição da riqueza (que por definição é tudo quanto o trabalho é capaz de produzir). Apesar de em boa medida comprometidas com a História, grande parte das visões envolvendo o papel do dinheiro no nosso contrato social é insuficiente para suscitar algo além da falsa impressão de ser possível usá-lo - e mesmo de já ter sido usado - de algum modo indiscutivelmente justo.

Mas se não foi possível para Woodcock - por quaisquer razões - discutir em profundidade, em 'Anarquismo', esse aspecto estrutural do Estado sob que vivemos e temos vivido há milênios, é certo que em muitas de suas passagens o leitor achará vestígios do que o levará, se de fato interessado e persistente, a empreender por si próprio essa discussão. Afinal uma das virtudes desse livro seria a de mostrar que, se possui uma húbris, até nisso o anarquismo é pura e boa subversão: pois só por modéstia, tendo por oriente a moderação, poderá a capacidade intelectiva humana, paradoxalmente, vangloriar-se do que faz (ou fará) no mundo ao seu redor. Paradoxo antigo, de qualquer modo.

16 fevereiro 2018

A que serve a ideologia neoliberal

'Neoliberalismo' é conceito burilado durante décadas para dar cara nova ao multimilenar capitalismo (que hoje insisto em chamar de 'dinheirismo'). Essa evolução não o tornou em essência num capitalismo distinto, e sim cumpriu mais uma etapa na constante e irrefreável adaptação do 'dinheirismo' às novas exigências dos tempos, no caso esses seguindo-se ao término da primeira guerra mundial, que levou a Rússia à miséria e fez desencadear ali experiência social de proporções inauditas. Fazia pouco mais de cem anos tivera de adequar-se às mudanças impostas pela tecnologia à produção de bens, com a chamada revolução industrial, período em que  foi seguidamente desafiado por ondas de opositores fomentados pelos ideais trazidos pela revolução francesa, desafio cuja culminância a revolução russa representava. As apostas do mundo no fracasso desses revolucionários novos eram sinal evidente do pavor de que uma rebeldia deflagrada numa fila para compra frustrada de pão fosse capaz de pôr de canto ou de enterrar definitivamente o modo particular de escambo, em que se elege um produto para mediar a troca dos demais, resistindo ao acosso de cerca de meia dúzia de milênios e responsável por essência e estrutura do que entendemos ainda hoje por Estado. Enfim, o comunismo, ainda que corresponsável (pois andava de par com o anarquismo) pelos ajustes sofridos pelo Estado até a revolução russa, destituindo monarquias e criando a base do que se chamaria de 'bem estar social', foi vilificado por causa dessa mesma revolução e sumariamente declarado inimigo da liberdade do indivíduo, ou seja, de destruidor do bem estar social, cuja concepção ajudou a promover.

Apesar de abrir uma de suas principais obras com uma teoria da origem do dinheiro, Mises, um dos propositores da ideologia a ser chamada de neoliberalismo, não parece ter-se dado conta, como seus seguidores, de que justo por manter em uso uma moeda o comunismo não passava de um dos incontáveis modos de o 'dinheirismo' adaptar-se às condições que lhe impunha uma época, dessa feita a de torná-lo em prática justa. Em aparência mal desconfiavam os ideólogos do neoliberalismo que por natureza o dinheiro não permite que o submetam a tal exercício de parcimônia, não, pelo menos, por muito tempo, que é axiomática sua rejeição à hipótese de uma sociedade em que ele não estabeleça classes distinguindo quem o possui em maior e menor quantidade, pois se a todos cabem quinhões idênticos seus, não faz sentido sustentar o alto custo de o manter em circulação*. Isto, no entanto, só a persistência no projeto comunista, auxiliada, naturalmente, pela incansável propaganda contra ele, viria evidenciar. A ideologia neoliberal ajudou a alimentar essa empreitada propagandística, bem como nutriu-se nela, tendo contribuído com o grosso dos argumentos visando demonstrar a inaturalidade do objetivo comunista: era preciso, pois, mostrar como o comunismo se contrapunha e de modo destrutivo a ao menos um desígnio da natureza, como o de que os indivíduos sejam distintos entre si segundo seus mais variados aspectos, em particular no que respeita ao valor da força de trabalho, único traço fundamental dos seres vivos que o dinheiro é suposto capaz de mensurar com justeza. Em suma, o neoliberalismo impôs-se descrever a potencialidade inerente ao dinheiro, o único efeito que sempre foi capaz de causar, o de uma sociedade desigual, como se fora isso determinado por lei da Natureza. O ser humano costuma definir-se ou envaidercer-se pelos modos de se contrapor às suas limitações inatas e pelo tanto que o faz, o caso de voar, por exemplo, mas quanto ao comunismo impunha-se a seus opositores dizer como a contraposição que propunha era, ao contrário, motivo para nossa espécie alarmar-se ou vexar-se.

Com esse propósito os ideólogos neoliberais não se vexaram de lançar mão de conceitos na base de modelos ideais de sociedade ainda mais radicais do que o comunista, como o anarquismo (no qual, em verdade, o comunismo teve origem). A autodeterminação do indivíduo - seu direito inato a autogerir-se - viria advogar agora a causa da distribuição desigual de riquezas entre os sujeitos de uma sociedade,  justo o oposto do que preconiza enquanto parte do anarquismo. Mais: a autodeterminação do sujeito viria ser elemento-chave de sorte laboratorial de monstruosidade a que se chamou de 'anarco-capitalismo', organização social gerida exclusivamente por outra aberração, o 'leviatã' denominado 'mercado', livre, enfim, das imposições do Estado pendendo então perigosa e vertiginosamente para a doutrina do bem estar social. Nada mais evidente aí do que a determinação de tornar sedutor o neoliberalismo - na verdade, o capitalismo ele próprio, o 'dinheirismo' - para quem se supunha já compromissado com a ala sócio-econômica dita, em geral, 'de esquerda', artifício comparável, talvez, à culinária das iguarias demasiada e diversamente temperadas na esperança de se adequarem a quaisquer gostos.

O neoliberalismo não passa de uma maquilagem que se aplicou ao capitalismo de sempre para justificar perante as massas - mais e mais afeitas às virtudes do pacto pelo bem estar social - a necessidade de que retorne, sem outros ou maiores disfarces ou subterfúgios, ao seu padtão milenar, clássico, natural, de administração, desta feita não mais ou não tanto personificada numa nobreza, mas num grupo de corporações gigantescas arbitrando e mercadeando absolutamente tudo relativo ao indivíduo comum, da rede de esgoto à Justiça, do nascer ao morrer. Trata-se nitidamente da versão moderna do 'despotismo esclarecido', esse estado de espírito dos poderosos do século XVIII que forneceu os melhores motivos para a famosa revolta iniciada na França, além de para o anarquismo e para o comunismo.

Não é muito, pois, o neoliberalismo, a despeito do que presume aparentar e, isto sim, é distrativo perigoso para o opositor incauto, que se deixa induzir à crença de a ideologia neoliberal ser tão só uma forma hipertrofiada e nefasta do 'dinheirismo', não o 'dinheirismo' - o capitalismo - ele próprio, sem tirar nem pôr - salvo, talvez, pela quantidade descomunal e destoante de maquilagem que lhe foi aplicada à cara. Entre as consequências de pensar desse modo está outra crença, cerne do aludido perigo: a de que depois de demolido o neoliberalismo sobrevirá o 'bom' capitalismo, a crença - já abandonada por quem aprendeu a lição-mestra da experiência comunista - de ser possível o uso justo ou solidário do dinheiro, esperança em contradição com o axioma mencionado acima (segundo o qual distribuição igualitária de dinheiro é exercício de inutilidade, proposição contraditória), cantado nota por nota no elogio neoliberal de si mesmo.

* Esse axioma se funda numa distinção crucial, entre acumulação de produtos do trabalho e acumulação do signo (representação) de seus respectivos valores. Sendo por condição tal signo e em vista principalmente da portabilidade que adquiriu ao assumir a forma de moeda, o dinheiro é potencialnente mais fácil de ser acumulado do que, na prática, os produtos cujos valores representa. Num cenário ideal em que o valor do trabalho (do que este produz, por conseguinte) é estimado pela necessidade do sujeito de usar o que produziu, não faz sentido para esse sujeito a acumulação - e a consequente manutenção - do produzido em quantidades maiores do que sua capacidade de os consumir. É muito mais trabalhosa a proteção de bens de consumo em geral do que a do 'bem' dinheiro, e daí é muito provável vir a urgência por 'liquidez' generalizada de tudo quanto se produz no ambiente economicamente orientado pelo 'dinheirismo'.