29 abril 2018

Mais do de sempre

Toda crítica ao capitalismo é bem-vinda? Talvez não. Por quê? Ora, porque a quase totalidade delas presta o inestimável desserviço de construir-se sobre o pressuposto de ser pensável uma economia onde o dinheiro continue fluindo sem que isto sequer se pareça com o capitalismo. Ledo, imperdoável equívoco. Mostra de o quanto o pensamento econômico dominante espalha sua influência, infiltrando-se nos meios que o opõem como a larva hibernada e sempre pronta a assumir seu papel biológico se a espécie de que é parte se vir porventura ameaçada de extinção.

O capitalismo tem sido insuperável nessa tática de sobrevivência, vide o fim de movimentos como o 'hippie', que passou a marca comprável em boutiques e agências de viagem oferecendo roupas, acessórios e planos de férias, propiciando a experiência 'libertadora' do hippismo a quem pudesse arcar com tanto. A crença de o uso do dinheiro ser regulável de modo a proporcionar um mundo 'mais igual' - seja qual for o sentido desta expressão - é sinal da péssima compreensão do que por natureza seja de fato o dinheiro e que regulá-lo tendo por limite - óbvio - a igualdade (a real, estrita) equivale a inutilizá-lo, a transformá-lo numa tola formalidade cuja manutenção teria custo incalculavelmente maior do que os 'benefícios': a única regra - ou lei -tolerada (ou, antes, exigida, imposta) pelo dinheiro é a da soberania do acordo das partes numa transação comercial, cabendo ao Estado (no caso, este Estado de que fazemos parte, urdido por e para o comércio) zelar para que se respeitem os acordos firmados, sejam quais forem os seus termos, e não o estabelecimento de limites para acordos futuros. Um pouco de História, ainda que em 'farrapos', ajuda a compreender isso.

É esta a base da autorregulação do mercado, que nada promete quanto a equidade na distribuição de riqueza. Equidade, quando muito, é aí tolerada no que toca a oportunidade de o indivíduo participar do jogo do capital, em que é triado logo à entrada se incapaz de sobreviver aos 'livres' acordos cuja mecânica é por inteiro fundada na ideia de carência, mormente a induzida, forjada de modo que os termos contratados sejam favoráveis à parte indutora da necessidade e forcem a anuência da outra. A 'soma-zero' - operação comercial sem vantagem de alguém - nunca pode ser objetivo no 'dinheirismo' (ou capitalismo), senão provisoriamente, à guisa de tática visando vantagens posteriores: uma economia com distribuição equânime de riquezas, por seja qual for o método, é profundamente desinteressante - além de contraproducente - do ponto de vista do dinheiro e o contínuo resultado 'soma-zero' das operações comerciais equivaleria a insustentável impasse militar diante do front, em que se investiu demasiado para serem tolerados adiamentos da perspectiva de vencer.

Mas não nos precipitemos em concluir, de modo semelhante ao que concluem os ingênuos críticos do capitalismo, que o dinheiro é criação daquela malignidade suposta inerir ao humano: outra sólida tolice. O dinheiro é ideia urdida ao longo de milênios, assim sugere a História, enquanto solução para o escambo efetivar-se sempre, para haver comércio ininterrupto mesmo quando o produto interessando a uma das partes numa transação comercial não estivesse disponível: assim como o escambo, que é a troca visando tacitamente a equivalência ('soma-zero') de riquezas, o dinheiro se estabelece sobre a perspectiva da carência, da indisponibilidade de algo. Qual outra razão, além da falta daquilo de que se necessita, levaria comunidades antes compartindo suas produções a medir o que passam a trocar entre si (escambo) e a garantir a realização dessas trocas mesmo quando seriam potencialmente frustradas (uso do dinheiro)? Escambo e dinheiro consistiram em respostas funcionais - e positivas, portanto - a circunstâncias adversas, mas terminaram mostrando-se, assim como outras tantas criações humanas, mais danosos do que o desejado, permanecendo em uso por estes milhares de anos em virtude da relativa praticidade e, principalmente, do hábito.

Escambo e dinheiro são o que são, são como são, funcionam como têm de funcionar. É para isto que a parca sabedoria do 'despotismo esclarecido' em que consiste a doutrina neoliberal tenta com grande sinceridade alertar: não há outra maneira de usar o dinheiro senão o deixar a cargo de quem o usa fazer dele o que bem entenderem, desde que sob a guarida de quem seja capaz de garantir o cumprimento dos termos desses entendimentos, no caso, o mecanismo de governo deste Estado como o conhecemos. Com empenho ainda maior do que o de justificar o uso do dinheiro, o neoliberalismo se encarrega de garantir o funcionamento da economia que ele move, demonstrando, por um lado, o quanto crê em sua eficácia e, por outro, o volume do que conhece a respeito desse signo numérico de valor, tamanho tem sido seu investimento em desinformar todos sobre a matéria: uma vez entendido haver vida econômica para além da contagem de moeda, sem hesitar o público em massa daria as costas para o dinheiro e, em consequência, para o seu efeito principal e mais nefasto, a desvalia relativa de trabalho e necessidade humanas, que em verdade é condição sine qua non da ocorrência do escambo.

E enquanto houver massa crítica convencida da imprescindibilidade da intermediação monetária na circulação de riqueza este sistema continuará tendo o fôlego habitual, sendo aqui coibido por uma lei mais intolerante e logo adiante achando um modo de compensar o que esta lhe fez perder. O dinheiro corre para onde se produz o de que mais se necessita e aí tende a acumular-se inevitável e necessariamente: produzir para uma demanda avantajada tem custos de hábito altos, sendo preciso tanto honrá-los como demonstrar capacidade de o fazer, de que dá conta o acúmulo de riqueza que, entretanto, só se sustenta enquanto houver quem aquiesça à desvalia da própria força produtiva e à hipertrofia do próprio desejo de consumir. Em uma palavra, é perda de tempo e de coerência protestar contra o acosso do dinheiro sem possuir sérias intenções de ao menos pensar em como livrar-se dele, o que não se consegue sem buscar conhecê-lo para além da enganadora teoria econômica dominante. Antes de uma disciplina exprimível em números a economia é formalização de uma moral (no sentido de 'hábito'), uma nascida da ideia de escassez (real e, principalmente, induzida) e orientada por ela para produzir miséria humana em meio ao que em realidade é fartura. É evidente que há o capitalista em crise aguda de insanidade (vez que a moral do capital é insanidade crônica), mas o principal artífice dessa miséria é precisamente sua vítima constante, porque a alimenta com o desvalor de si mesma, com a mercantilização da própria força vital, manifesta na necessidade que tem e no trabalho a ser despendido para satisfazê-la.

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