14 abril 2018

Balzaquianas Brasileiras para a Democracia Indireta

'Democracia Representativa' - o nome diz tudo: grande peça!  À primeira vista talento inato para o drama, aquele  com tintas de épico, o tempo revelaria seu pendor verdadeiro: a ambição secreta de protagonizar farsas, as do gênero revista, em que satisfaria de multidões os anseios mais recônditos. Sucesso meteórico e permanente, viu-se obrigada a mexer no preço do ingresso quando as filas davam nó na cidade, a título de prover o conforto na plateia. Vê-la em cena, hoje, é para quem pode.

Foi como ganhou fama de cortesã, daquelas de alta rotatividade. Mas como para todos os fins é atriz ainda, por questão de respeito e em proveito próprio a clientela impôs ao assunto tratamento circunspecto, designando-o 'alternância', doravante cobrada de todos com rigor absoluto, mas cumprida mormente à base de trapaça, nem sempre em grande estilo, tolerada entretanto com o melhor da hipocrisia.

Disso resulta fenômeno inusitado, intensa movimentação em todo e qualquer recanto da casa onde se julga haver a mais pífia privacidade, dos lavatórios sempre lotados aos desvãos sombrios no foyer ao lado das escadas, sem falar nos corredores e em camarotes e frisas a cortinas cerradas, para onde acorre a assistência, seja em grupelhos, seja induvidualnente, a manejar qual recurso for de maquiagem, máscaras, todo adereço ou indumentária inusitados e à disposição para a doce vanglória de poder ocupar a cena ao lado da estrela por quaisquer dois ou três esquetes consecutivos, ou mesmo para conservar o assento de uma sessão para a seguinte. Na fila de espera o populacho resmunga, esbraveja, vocifera, isto não querendo dizer que não compreenda a resistência geral para deixar o teatro ao fim dos espetáculos, prática consabida e transigida em base universal como é, de modo que a despeito dos sinais de certo cansaço, desenvolveu a Democracia Representativa tolerância inesgotável para os tipos mais truculentos e nada discretos com quem sob pressão constante é frequente ter de contracenar.

Mas não se avance que o sarcasmo e a leviandade que entretêm gerações se tenham por acaso lhe colado à cara, por assim dizer. Não. Mantém-se o mais estritamente possível nos limites da profissão, assim dissimulando com eficiência razoável seu potencial ainda latente - apesar da meia-idade - para apaixonar-se, a um só tempo desejado e temidos por quem a cerca. É coisa de uma vez na vida e que dá motivo para revoluções se transparecida, em particular se o felizardo é recém-chegado e, para piorar, pobretão. Em tais circunstâncias vêm à luz suas insuspeitas fragilidades, como seria de esperar, quando está sujeita a perder cacos, pular texto, marcações, tropeçar no ponto, a cabeça longe a tramar maneiras de atrair ou de manter ao lado o escolhido, mesmo quando cadeiras começam a ser rasgadas, programas, picados e o rumor crescente se avizinha da vaia, alvoroço de hábito durando não mais de dois atos seguidos, quando então é invadido o palco e o par, separado, talvez para todo o sempre.

É nessas circunstâncias ásperas que de monossílabos rosnados entre dentes à mostra a ela é dado conhecer o que se omite dos relatos populares de sua história, além de um tanto mais que a contraria: seria antes bastarda dum Aristocratismo Monocrático que descendente tardia da mítica Democracia Direta, como alardeado por aí, que foi assim chamada para a distinguirem de si desde que sucedeu na carreira teatral e cujo nome correto é 'Democracia', somente - "A verdadeira", sussurram-lhe ao ouvido quando acham por bem humilhá-la. De todo modo, pensa com tristeza para os próprios botões, 'Representativa' ou 'Indireta' são epítetos jamais envergados por ela com conforto, e o pendor que têm para o pejorativo é provável ter sido determinante para que do épico tenha descido à revista e daí à involuntária cortesania, como se fora sempre ou procurasse ser eco, embora vazio, duma ancestral postiça e, ademais, de existência quiçá improvável ou impossível, se confiável é tudo quanto nesses momentos de ignomínia a ira alheia lhe diz. Tanto que começa a apreciar a eventualidade de sem constrangimentos adotar nome bombástico e mais condizente com quem de fato é (e a despeito da pecha da bastardia), o de 'Democracia Oligárquica' ou 'Oligarquia Democrática', a escolha de um dos quais cogita de realizar em concurso que cinicamente confiará a sufrágio universal.

Vinganças à parte, a melancolia dessa alma feminina salta aos olhos depois de reconduzida à função habitual. É dum suspiro fingindo-se de fingido, da clássica pausa para induzir risada ou ovação que se depreendem os amores impedidos, presos, exilados, ou coisa pior, a tragédia de ser ilusão manipuladora e manipulada de quem precisa desse engodo para dar interesse à própria vida. Portanto aproximem-se, senhoras e senhores, não deixem de ver de perto esse espetáculo permanente, enquanto ainda em cartaz; não percam a oportunidade de estar em cena com a última das deusas. A qualquer um é permitido entrar,  ou assim se diz; é claro, desde que possa!

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