20 maio 2016

Entender o Brasil agora

O golpe contra a brasilidade vai muito além da usurpação do eterno interino. Ele produziu inimigos de morte habitando os mesmos lares, na porta ao lado, no desconhecido que cumprimentávamos por cortesia. Transformou idiotas em armas letais, fez legião de ingratos de miseráveis históricos depois de comerem, vestirem e estudarem pela primeira vez em séculos e tirou da vergonha em que se ocultavam ou dissimulavam as verdadeiras forças do mal herdeiras de escravismo e ditadura. O Brasil não poderia parecer mais insolúvel e no entanto tão à beira de uma solução - a final?

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Mais do que a cara da direita, que circulava pelas sombras da vergonha coberta de ódio e pulsava como um feto pútrido no interior dos idiotas, a humilhação do golpe mostra ao brasileiro a nudez de corpo inteiro de sua esquerda. Em nada diversa das demais nudezas de quaisquee nacionalidades, falha em esconder que nunca esteve vestida senão dos destroços e farrapos que deixam sobre nós os fracassos do capital em fazer do mundo lugar digno do próprio nome.
Se chega ao poder, não é por lhe ter o povo apreço especial, mas  por oportunismo geral, à guisa de equipe de resgate em catástrofe consumada, arriscando-se por isso à execração sumária, caso não recobre as vidas todas, ou à santidade perigosa dos mitos, e assim tender a se fazer presa da própria imagem ao espelho. Entretanto é mais comum circunstãncia mais singela, em que se submete à pecha de serviçal de faxina nas ressacas seguindo as esbórnias do dinheiro.

Feito o serviço, se acaso deixando a desejar, é caçada e abatida, decerto merecidamente, e se a contento, é de quqalquer modo escorraçada, passando então a vagar nua e louca pelos becos, choramingando e rogando pragas, ignorada por quem se apruma, garçom ou conviva, a caminho do festim novo no endereço que faz pouco acabou de limpar. Passará a noite entre resmungos inúteis e gestos obscenos à volta da balbúrdia, até que na madrugada o tempo a console e a faça sentar nos degraus do portão enquanto não vem o sol, para só então usar a entrada dos fundos e nas pontas dos pés beliscar as sobras em torno dos corpos cheirando a embriaguez e aproveitar-se dos roncos para arrastar cuidadosamente os móveis e esfregar os cantos.

14 maio 2016

'Eles'

Não é à toa que 'eles' dizem o que querem, doa em quem doer (desde que não neles próprios, é claro). Desenhando: a lei, por princípio, é o dispositivo estabelecedor do crime, ou seja, nela se diz o que é e o que não é crime. Tão fundamental é esse princípio legal, que está estampado na Constituição: não existe crime que não seja prescrito em lei - reza, mais ou menos assim, o texto magno. 'Eles', assim tão mal na foto, são o Legislativo: os que escrevem a lei, portanto. Por lei, não estão nem podem estar acima de lei nenhuma, o que não tem a menor importância, pois na realidade estão antes de todas.

Em causa própria ou em nenhuma outra causa

A maior contribuição do Brasil para a ciência política ainda estará por reconhecer-se, mas só depois de esta jogar por terra o prurido de admitir seu axioma fundamental. É aqui no País que se tem demonstrado para além de qualquer dúvida que todo indivíduo, de necessidade político, só atua - só pode atuar - em causa própria.

Nada mais natural que assim seja, pois ameaçada ou perdida esta causa, que em importância é primeira, todas as demais que defenderia deixarão de ter vez. A arte do embate político, portanto, resume-se em pôr permanentemente em xeque a causa própria de todo opositor, desse modo trancando a possibilidade de que cogite invocar outras, as causas comuns, compartilhadas, fragilizando-lhe a capacidade ele fazê-las prosperar.

É incomum a causa própria do indivíduo ser a mesma de um outro e mais incomum ainda que seja a de grupo de indivíduos; entretanto toda e qualquer causa própria tem por eixo ou fundamento a sobrevivência, ou seja, a busca do indivíduo por manter-se vivo, que pode ser dita a 'causa própria universal'.

Das causas comuns - ou causas partilhadas - pode dizer-se  serem constructos abraçados por mais de um indivíduo por abrigarem ao menos uma causa abraçada por cada um deles e, no mínimo, a 'causa própria universal', podendo estas duas ser, inclusive, uma e a mesma.

Como é evidente, a 'causa própria universal' não possui por si 'corpo', senão excepcionalmente. É inteiramente geral, 'substancializando-se' em outras causas próprias, que lhe conferem a possibilidade de ter algum efeito. Quando 'substancializada em si mesma', excepcionalmente, a 'causa própria universal' se constitui na manutenção imediata dos sistemas vitais do indivíduo, o que habitualmente a condição gregária tende a prover para a grande parte ou para a totalidade dos elementos na grei. A 'causa própria universal' é a essência ou o eixo das causas próprias palpáveis, ainda que entre si conflitantes, e todas as causas, mesmo as coletivas, têm por raiz - ou eixo, ou  essência - a 'causa própria universal'.

Num sistema de gestão da 'coisa pública' admitindo a representatividade a posição de representante de subgrupo da sociedade determina uma causa própria peculiar, que é a de o indivíduo conservar-se na condição de representante, isto é, a de manter-se na assembléia de representantes. Do jogo político de que consta a representatividade, portanto, é parte inalienável algum empenho de cada representante, visando a prevalência da causa comum que foi instado a defender na assembléia, em ameaçar a estabilidade da condição representativa do outro.

Embora inseparável do jogo político representativo, o empenho dos representantes em reciprocamente por em xeque suas estabilidades enquanto representantes é fator cujo abuso e descontrole generalizados é comum determinarem seja o caos do sistema, seja sua estagnação. Para que a administração pública avance é preciso que o embate ocorra no plano das causas comums defendidas por cada representante, servindo o embate no nível das causas próprias como instrumento circunstancial de pressão em apoio às disputas no outro nível.

O embate das causas comuns ou coletivas defendidas por cada representante é suposto se dar pela avaliação de qual ou quais delas oferecem as maiores vantagens e os menores danos para a comunidade como um todo, decorrendo, pois, no âmbito da argumentação técnica, onde com exclusividade é esperado resolver-se. O uso do embate  no nível da causa própria de cada representante, portanto, deveria ser desnecessário, sendo sinal de algum tipo de fragilidade do tecido político quando presente, tendendo a disseminar-se e a prevalecer, caso providências não sejam tomadas para estancá-lo ou para, no mínimo, mantê-lo em patamares toleráveis. Perdido esse controle mínimo sobre ele, tende a tornar-se a face visível das assembléias de representantes, postergando ou eliminando por completo o debate sobre as causas comuns.

O único fator com capacidade suficiente para contornar assmbleias de representantes em caos ou estagnadas é a opinião pública forte ou organizada, que pode agir tanto diretamente, pela massa de cidadãos, quanto indiretamente, quando apóia em massa um representante e assim o capacita a resover o óbice, recolocando em pauta a discussão das causas coletivas. É entretanto possível que o embate de causas próprias dos representantes contamine as massas, impedindo-as de tomar as rédeas da situação, impedindo-as de organizar-se, desse modo pavimentando o caminho para a desordem geral, o embate disseminado, a guerra civil. Circunstâncias como essa tendem a permanecer indefinidamente ou até que as perdas determinem seja a eliminação ou o suficiente enfraquecimento de uma ou mais das facções envolvidas, seja a trégua e a negociação, que não passa do estabelecimento ou restabelecimento das causas comuns.

Diante desta exposição é possível talvez mensurar a estabilidade de uma nação e os riscos a que está sujeita avaliando-se o comportamento dos representantes quanto ao uso ou abuso do embate de causas próprias enquanto dispositivo de pressão para a viabilização das causas coletivas que debatem. A maior visibilidade do debate sobre causas coletivas, então, é sinal de o sistema conservar-se estável e quanto mais visível é o embate de causas próprias, maiores a instabilidade e o risco de contaminação da esfera dos cidadãos. Há também a circunstância de entre os representantes prevalecer o embate de causas próprias e este não ter a visibilidade que lhe caberia, sinalilzando a possibilidade de o embate em torno às causas comuns estar sendo utilizado como cortina de fumaça para o outro, o que seria detectável pelos recorrentes impasses ou alguma estagnação do país determinada pela escassa coerência dos projetos aprovados, ocorrendo mais perdas do que ganhos para a população em geral.

Assim que em termos ideais é imprescindível que a causa própria de um representante e a causa comum, por ele representada, se impossível coincidirem, sejam quase a mesma ou tenha esta última a anterior por eixo, de modo a garantir que a consecução de uma se articule na consecução da outra inevitavelmente. Fora dessa perspectiva a atividade política representativa não procede, estanca. Isto porque o princípio por trás desse panorama estabelece que só se vive em causa própria ou em causa nenhuma.

Punição preventiva e perfil da Justiça: entrelace de meditações

Sendo embora tema caro à ficção, a precognição de crimes não é 'instituto' - diria o rábula - com que se possa ou mesmo se deva contar no mundo real. Representa o anseio hiperbólico de livrar de delitos o mundo atacando-os in utero, quando ainda são possibilidade. O instrumento mais próximo que se possui disto é a lei, que em si e de fato não prevê nada além do que em seus termos é delineado das ilicitudes, não sendo necessário que venham ocorrer tão-só por estarem ali descritas. Não bastasse consistir na resposta a atos considerados de algum modo e em algum grau incômodos ou inoportunos, tais atos têm de necessidade, portanto, já ter ocorrido (pois não parece justo ou são legislar sobre atos hipotéticos, exclusivamente potenciais, jamais observados), o alcance futuro da lei pode ser, quando muito, obtido na forma de preventivo. Previne por prescrição do que se pode ou não se pode - ou do que é devido ou indevido - fazer e por cominação, porque - esclarece o rábula - prescrição alguma faz sentido sem a contrapartida que induza a acatá-la: parece não bastar ao humano lhe apontarem o caminho do bom sem, ato contínuo, espicaçá-lo para que o tome.

Fora desse âmbito parece não apenas injusto, mas insano, falar-se em prevenir crimes dum ponto de vista judicial. É certo, entretanto, que o posicionamento de polícia onde é habitual ocorrerem malfeitos pode sugerir cautela excedendo essa indicação, mas é bastante compreendê-lo como representação viva da prevenção na lei, simbolizando a um só tempo e potencialmente prescrição e cominação, isto é, desde que conserve a condição pontencial até ser explícita e inequivocamente instada a atuar, é claro, coibindo e, em justa medida, punindo o ilícito efetivamente cometido. Em outros termos: não é facultado ao agente da lei adivinhar ocorrência de crime. Fosse o contrário e não sendo ele, por exemplo, vidente, a sociedade tenderia a constituir-se em gigantesco sistema prisional e as leis em indutoras de insanidade mental em seus agentes.

Punir preventivamente, portanto e se pouco, é monstruosidade - 'teratologia', atalha o rábula. Punição é jargão jurídico para vingança e que eufemisticamente se acredita denotar reabilitação eventual para o condenado de crime e lenitivo para o lesado por ele. Em si mesma ou enquanto fato não é garante de uma coisa ou de outra, demonstrando que a justiça só se projeta no futuro, exclusivamente em potência, por intermédio da lei e de seus agentes, e perante quem os cidadãos se permitem coibir-se de produzir malfeito à hipótese de serem punidos. Os demais, insensíveis à cominação legal, acreditam ser seus atos eles próprios expressão da justiça, supostamente contemplando o que a lei, por motivos nem sempre nobres ou justos, teria escolhido omitir.

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A Justiça, ela mesma, não é cega. Não se pode anuir a que o seja sem incorrer em equívoco sério. É dedutível que possua o sentido da visão porque do contrário seria despropositado vendar-se, salvo se por motivos estéticos ou de autoestma. Permite, então, que a vendem e só para a presumirem isenta, imparcial, não exclusivamente quanto a quem, mas também quanto a o quê. Seu sentido privilegiado é o ouvir, não por ser cega, insista-se, mas por não ter visto o que irá julgar, porque atua depois de ocorrência extraordinária. Sua matéria, pois, é o que outros viram e então lhe narram: por isso ouve e exaustivamente, a saber, versões até opostas, contraditórias do fato, à medida que as depositam na balança que traz na mão. Sua matéria é o verbo puro, do qual retirará a verdade possível em meio ao que em primeira abordagem pode saber a paradoxo. E a retirará pela extrema sensibilidade do tato dizendo-lhe o peso relativo dos pratos pendentes.

Em sendo indicativo de que julgará pelo que ouve por não ter visto, a venda o é também de que foi chamada, instada a dirimir dúvida, impasse, e de que só o faz quando convidada. Agir de outro modo seria trocar-se por estranha, a tirania, ou por figura que tomam por si, embora possua asas, a vingança - Nêmesis. Para a Justiça o mundo, como o indica seu homógrafo adjetivo, é puro e tende a resolver-se sem necessário ser que interceda senão quando convidada. E até que inicie e mesmo até concluir seus trabalhos tem de conservar-se assim, na presunção de que trata com o puro até que se demonstre, se prove, o contrário. Agir de outro modo seria passar-se por vate, arriscar-se em profecias, e esse é definitivamente um papel que a Justiça reluta em desempenhar, o de antever seja o que for - considerando que já não viu o que foi - e eis, daí, mais uma razão para ter-se feito vendar: não pode, não deve arriscar o olhar adiante.

Faz tempo vem-se recusando a Justiça a entrar em cena portanto mais do que a balança. Concedeu em empunhar espada por tempo demais, em claro desalinho com sua real natureza, demonstração esta de ter sido em extremo gentil com cessão assim duradoura. Espada foi sempre instrumento de Nêmesis, jamais tendo encontrado a Justiça ocasião de usá-la, pois punir é instância extrema da lei e antes tendo em vista prevenir o que ali se prevê, isto é, a incidência ou reincidência em falta: e fora justo ou razoável castigar, que sentido teria ungir o humano com os dilemas do livre-arbítrio se fosse ele previsível como a queda livre dos corpos? Por isso ela não faz leis, por serem intrinsecamente preventivas e deverem para tal prever punições, cominá-las - corrige o rábula. Por conseguinte, também não pune, já que punir tem parte com prevenir, que pressupõe prever, antecipar o imprevisível. Ela julga apenas e apenas segundo critérios que lhe fornecem os próprios homens, que são as leis. Quem pune são os homens, orientados ou auxiliados pela vingança, cuja espada é sinal dos seus ardis, e as asas, da pressa e da presunção indutiva (como a de conceber o futuro).

Enquanto espírito que possui o humano antes de permitir que o encarne Nêmesis, a Justiça tem, sim, alguma participação na cunhagem das leis, oferecendo sua balança à guisa de norte ou farol, mas não por isso permite-se interpretá-las quando em ato de julgar: seria interferir, rasurar, reescrever o que é de responsabilidade exclusiva do homem, fugindo inteiramente ao seu perfil arriscar em jogos dessa natureza o próprio equilíbrio. Quando muito colige, em meio à prolixa, desatinada e deseseperançada busca humana por equidade que constitui as legislações, o que concerne ao pleiteado e se julga é quanto a se terem esgotado os recursos das partes, quando o debate chega ao termo da lei. Ir além disto, repita-se, é ombrear-se com os homens, tomar para si o que é tarefa deles, arriscar-se a que a tomem por vingança, mas se algo se atreveria a ordenar, isto seria o retorno do mundo ao que é enquanto adjetivo - puro, em equilíbrio, numa palavra, justo.

Nem isto, entretanto, cabe à Justiça - ou permite-se ela - pronunciar, cabendo-lhe talvez mostrar, como por eras vem fazendo, ao homem o que em verdade é, como num desnudar-se, a começar com a rejeição da espada, lento e parcimonioso para com o entendimento delicadamente instável dos que o presenciam. Com o tempo quiçá entendam que o fim dela, Justiça, é diluir-se em pura reintegração do que fugiu à regra, é o exercício sem esforço do perdão genuinamente pedido e concedido, o que não parece ainda ser destino visível. Porque perdão é o que por intuição se ofereceria ao agravo involuntário, que sequer confina com o descuido, enquanto o castigo se aplica, também intuitivamente, à falta que se entendeu propositada. E se propósito houve - toma a palavra o rábula, como a pavonear-se justo - é porque houve motivo, pelo que é estreito o caminho de perdoar quando o amesqunham avenidas em que trafegam nos dois sentidos crime e seus ensejos e onde, desnorteadas, procuram inutilmente estabelecer alguma ordem as punições.