14 maio 2016

Punição preventiva e perfil da Justiça: entrelace de meditações

Sendo embora tema caro à ficção, a precognição de crimes não é 'instituto' - diria o rábula - com que se possa ou mesmo se deva contar no mundo real. Representa o anseio hiperbólico de livrar de delitos o mundo atacando-os in utero, quando ainda são possibilidade. O instrumento mais próximo que se possui disto é a lei, que em si e de fato não prevê nada além do que em seus termos é delineado das ilicitudes, não sendo necessário que venham ocorrer tão-só por estarem ali descritas. Não bastasse consistir na resposta a atos considerados de algum modo e em algum grau incômodos ou inoportunos, tais atos têm de necessidade, portanto, já ter ocorrido (pois não parece justo ou são legislar sobre atos hipotéticos, exclusivamente potenciais, jamais observados), o alcance futuro da lei pode ser, quando muito, obtido na forma de preventivo. Previne por prescrição do que se pode ou não se pode - ou do que é devido ou indevido - fazer e por cominação, porque - esclarece o rábula - prescrição alguma faz sentido sem a contrapartida que induza a acatá-la: parece não bastar ao humano lhe apontarem o caminho do bom sem, ato contínuo, espicaçá-lo para que o tome.

Fora desse âmbito parece não apenas injusto, mas insano, falar-se em prevenir crimes dum ponto de vista judicial. É certo, entretanto, que o posicionamento de polícia onde é habitual ocorrerem malfeitos pode sugerir cautela excedendo essa indicação, mas é bastante compreendê-lo como representação viva da prevenção na lei, simbolizando a um só tempo e potencialmente prescrição e cominação, isto é, desde que conserve a condição pontencial até ser explícita e inequivocamente instada a atuar, é claro, coibindo e, em justa medida, punindo o ilícito efetivamente cometido. Em outros termos: não é facultado ao agente da lei adivinhar ocorrência de crime. Fosse o contrário e não sendo ele, por exemplo, vidente, a sociedade tenderia a constituir-se em gigantesco sistema prisional e as leis em indutoras de insanidade mental em seus agentes.

Punir preventivamente, portanto e se pouco, é monstruosidade - 'teratologia', atalha o rábula. Punição é jargão jurídico para vingança e que eufemisticamente se acredita denotar reabilitação eventual para o condenado de crime e lenitivo para o lesado por ele. Em si mesma ou enquanto fato não é garante de uma coisa ou de outra, demonstrando que a justiça só se projeta no futuro, exclusivamente em potência, por intermédio da lei e de seus agentes, e perante quem os cidadãos se permitem coibir-se de produzir malfeito à hipótese de serem punidos. Os demais, insensíveis à cominação legal, acreditam ser seus atos eles próprios expressão da justiça, supostamente contemplando o que a lei, por motivos nem sempre nobres ou justos, teria escolhido omitir.

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A Justiça, ela mesma, não é cega. Não se pode anuir a que o seja sem incorrer em equívoco sério. É dedutível que possua o sentido da visão porque do contrário seria despropositado vendar-se, salvo se por motivos estéticos ou de autoestma. Permite, então, que a vendem e só para a presumirem isenta, imparcial, não exclusivamente quanto a quem, mas também quanto a o quê. Seu sentido privilegiado é o ouvir, não por ser cega, insista-se, mas por não ter visto o que irá julgar, porque atua depois de ocorrência extraordinária. Sua matéria, pois, é o que outros viram e então lhe narram: por isso ouve e exaustivamente, a saber, versões até opostas, contraditórias do fato, à medida que as depositam na balança que traz na mão. Sua matéria é o verbo puro, do qual retirará a verdade possível em meio ao que em primeira abordagem pode saber a paradoxo. E a retirará pela extrema sensibilidade do tato dizendo-lhe o peso relativo dos pratos pendentes.

Em sendo indicativo de que julgará pelo que ouve por não ter visto, a venda o é também de que foi chamada, instada a dirimir dúvida, impasse, e de que só o faz quando convidada. Agir de outro modo seria trocar-se por estranha, a tirania, ou por figura que tomam por si, embora possua asas, a vingança - Nêmesis. Para a Justiça o mundo, como o indica seu homógrafo adjetivo, é puro e tende a resolver-se sem necessário ser que interceda senão quando convidada. E até que inicie e mesmo até concluir seus trabalhos tem de conservar-se assim, na presunção de que trata com o puro até que se demonstre, se prove, o contrário. Agir de outro modo seria passar-se por vate, arriscar-se em profecias, e esse é definitivamente um papel que a Justiça reluta em desempenhar, o de antever seja o que for - considerando que já não viu o que foi - e eis, daí, mais uma razão para ter-se feito vendar: não pode, não deve arriscar o olhar adiante.

Faz tempo vem-se recusando a Justiça a entrar em cena portanto mais do que a balança. Concedeu em empunhar espada por tempo demais, em claro desalinho com sua real natureza, demonstração esta de ter sido em extremo gentil com cessão assim duradoura. Espada foi sempre instrumento de Nêmesis, jamais tendo encontrado a Justiça ocasião de usá-la, pois punir é instância extrema da lei e antes tendo em vista prevenir o que ali se prevê, isto é, a incidência ou reincidência em falta: e fora justo ou razoável castigar, que sentido teria ungir o humano com os dilemas do livre-arbítrio se fosse ele previsível como a queda livre dos corpos? Por isso ela não faz leis, por serem intrinsecamente preventivas e deverem para tal prever punições, cominá-las - corrige o rábula. Por conseguinte, também não pune, já que punir tem parte com prevenir, que pressupõe prever, antecipar o imprevisível. Ela julga apenas e apenas segundo critérios que lhe fornecem os próprios homens, que são as leis. Quem pune são os homens, orientados ou auxiliados pela vingança, cuja espada é sinal dos seus ardis, e as asas, da pressa e da presunção indutiva (como a de conceber o futuro).

Enquanto espírito que possui o humano antes de permitir que o encarne Nêmesis, a Justiça tem, sim, alguma participação na cunhagem das leis, oferecendo sua balança à guisa de norte ou farol, mas não por isso permite-se interpretá-las quando em ato de julgar: seria interferir, rasurar, reescrever o que é de responsabilidade exclusiva do homem, fugindo inteiramente ao seu perfil arriscar em jogos dessa natureza o próprio equilíbrio. Quando muito colige, em meio à prolixa, desatinada e deseseperançada busca humana por equidade que constitui as legislações, o que concerne ao pleiteado e se julga é quanto a se terem esgotado os recursos das partes, quando o debate chega ao termo da lei. Ir além disto, repita-se, é ombrear-se com os homens, tomar para si o que é tarefa deles, arriscar-se a que a tomem por vingança, mas se algo se atreveria a ordenar, isto seria o retorno do mundo ao que é enquanto adjetivo - puro, em equilíbrio, numa palavra, justo.

Nem isto, entretanto, cabe à Justiça - ou permite-se ela - pronunciar, cabendo-lhe talvez mostrar, como por eras vem fazendo, ao homem o que em verdade é, como num desnudar-se, a começar com a rejeição da espada, lento e parcimonioso para com o entendimento delicadamente instável dos que o presenciam. Com o tempo quiçá entendam que o fim dela, Justiça, é diluir-se em pura reintegração do que fugiu à regra, é o exercício sem esforço do perdão genuinamente pedido e concedido, o que não parece ainda ser destino visível. Porque perdão é o que por intuição se ofereceria ao agravo involuntário, que sequer confina com o descuido, enquanto o castigo se aplica, também intuitivamente, à falta que se entendeu propositada. E se propósito houve - toma a palavra o rábula, como a pavonear-se justo - é porque houve motivo, pelo que é estreito o caminho de perdoar quando o amesqunham avenidas em que trafegam nos dois sentidos crime e seus ensejos e onde, desnorteadas, procuram inutilmente estabelecer alguma ordem as punições.

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