19 novembro 2016

Argumentar não é para qualquer um.

Isto não é o mesmo que dizer que há humanos normais, plenamente funcionais e, no entanto, incapazes de argumentar. Que fique claro que semelhante aberração inexiste. Desde que em condições regulares o aparelho biológico humano favorece o bom senso.

Mas é como qualquer outra habilidade inata essa da argumentação. Devido à constituição somos todos capazes de chutar, por exemplo, entretanto só os mais aplicados no exercício do chute conseguem fazer adequado uso de uma bola no futebol ou acertar com precisão cirúrgica o pé onde é mais doloroso para um oponente.

Somos todos propensos ao bom senso. Mesmo meus cachorros e gatos o eram, guardadas as devidas diferenças entre as suas e nossa constituição. Mas há limites no usá-lo, superados somente a duras penas - na verdade nem tão duras assim quando há no praticante boa vontade.

Sem essa predisposição não há debate ou, quando muito, há bate-boca. E sem o bom debate é o próprio bom senso que se vê prejuticado porque, como teria observado o sofista Protágoras há dois mil e quinhentos anos, a razão é uma construção coletiva e não ou não tanto aquele edifício perfeitamente acabado que nós, qual cegos, vamos tateando para fazer idéia do que e de como é.

É Iván Izquierdo, neurocientista brasileiro de origem argentina, quem mostra o caminho das pedras para a compreensão do motivo de a razão ser e ter de ser obra de todas as mãos possíveis e de boa vontade - e às vezes mesmo das de má vontade, já que a propensão para pensar não é com facilidade refreável e termina por gerar eventualmente bons palpites, mesmo à revelia dos palpiteiros. Izquerdo, assim, observa que em tudo já produzido pela neurociência jamais se encontrou vestígio de separação entre o que se chama de razão e de emoção, isto é, no quanto se julga ser racional na atividade da mente há 'contaminação' de sentimentos e emoções e vice-versa.

Enfim, é fácil ver, como já viam pensadores como Epicteto e Epicuro, que a razão é tecido feito com o fio de tudo quanto se sentiu, é modo de organizar a sensibilidade (aí incluída a emoção) que pode começar, por exemplo, ensinando-nos que nem sempre obtemos o mel enfiando intempestivamente a mão nua na colméia. E como de um para outro de nós varia a sensibilidade, ainda que dentro de certos limites, nada mais natural que busquemos fazer dessas diferenças o tecido consensual que chamamos de razão e que, insisto, só é viável porque a despeito das discrepâncias guardamos muito - e como! - de traços em comum.

Além disso imagine-se que à medida em que cresce em complexidade esse outro tecido, o das relações sociais, aumenta - e, eu diria, exponencialmente - o quanto vem ajuntar-se ao tecido compartilhado de sensibilidades, fazendo dessa tecedura verdadeiro projeto de vida. É evidente, nem todos parecem dispostos a dedicar sua existência à tecelagem do bom senso, abrindo mão de, por exemplo, rega-bofes, bate-coxas e, mais importante ainda, de sobreviver nesta selva criada pelo humano para escapar da outra, que o mundo lhe deu.

Hoje a especialidade mais comum, mais difundida entre nós é a da sobrevivência a nós próprios, as demais áreas da vida sendo delegadas aos que crêem ter mais afinidades com elas ou se julgam remunerados bem o bastante para tratar com exclusividade do que não é exclusivamente seu. Da faina desses outros especialistas os especializados em sobreviver ficamos com somente o que concedem eles em divulgar ou, mais provavelmente, com o que desse tanto fazemos sentido.

Para lá de certo grau de complexidade, então, erguemos o braço e estalamos os dedos até que nos atenda algum desses delegados, o que pode tornar um debate em espera maçante ou, pior, frustrante, porque nada garante que esse sujeito saiba como resolver a questão. Portanto se você acha que a solução de nosso entrevero sócio-político passa pela argumentação, como de fato, inequivocamente passa, prepare um bom farnel com paciência acima de qualquer outro artigo necessário, embora sem deixar para trás o bom preparo físico e mesmo um razoável colete à prova de balas: pelo caminho é bem provável topar com tipos para quem a solução de toda pendenga só se dá à base de tiro ou cacete.