10 abril 2016

Por que em claro vivamos sempre, noites e dias!

"... um governo que finge ser de esquerda mas..." - diz um estudante francês no abril de noites em claro. Já ouvimos e continuamos, deste lado do Atlântico, a ouvir essa frase.

Mas seria sensato negar a todos os governos o benefício de duvidarmos de que prometem mentiras para se elegerem? Creio que não - não a todos!

A mecânica ainda incompreendida ou não aceita da democracia constitui fluxo, como o sanguíneo, que em condições normais não tem como não passar pelo coração se o indivíduo vive. No organismo democrático é a população o coração e o sangue. Não é possível pensar a democracia como aparelho funcionando sob controle remoto enquanto dividimos a atenção com outras coisas: não que se trate de vigia perpétua da coisa pública, pois não há o que vigiar quando efetivamente se faz essa coisa em conjunto, quando o foco é o bem de todos, sem exceção, o bem que não é ponto fixo a ser buscado mas acomodação permanente do abuso à tolerância - e não o contrário.

É tola a assunção de que a ênfase no comum minimiza ou elimina o individual, o privado. É tola por não fazer sentido, pois não há coletividade senão a de indivíduos plenos, assim como individualidades exacerbadas ou amputadas formam, quando muito, coleções, conjuntos na acepção matemática do termo. Em comunidades verdadeiras privado e comum se reforçam, cooperam, dialogam, jamais se opõem um ao outro. E o único critério exigido para que isto se dê é a atenção focada no comum, pois não há o comum senão o pertencente a todos.

O quid de nossos problemas reside em mentalidade tirada de delírio e transformada em pesadelo, a da individualidade superabundante, cuja presença só se consolida se rodeada de individualidades amputadas - e permanentemente insatisfeitas. Nem a perspectiva - ou promessa - de que, embora limitados, os espaços para individualidades exuberantes podem ser ocupados por todos ou quaisquer uns em turnos torna tolerável o agrupamento humano nesse molde - do que estamos advertidos desde há séculos. E se temos teimado em manter-nos nele, admitamos, é ou porque não conseguimos abrir mão do que temos por privilégios ou porque aguardamos com impaciência a oportunidade de os usurparmos.

Num contexto assim, se algo de comum existe, é o sentimento de mútua exclusão de todos os projetos pessoais por intumescimento próprio, alguns associando-se provisoriamente em vista de aumentarem seu poder e escolhendo quem o represente e exerça frente aos outros, enfim, a democracia como nesses termos somos capazes de compreender, de conceber, a democracia em que o projeto comum - de País - é estratégia de guerra: não é à toa que corremos a abraçar a proposta hegeliana de lógica em que o paradoxo é tolerado enquanto solução.

E num contexto assim não se espere que se cumpram facilmente as promessas, por sinceras que sejam, de aspirantes a representantes de grupos, por maiores que estes sejam. Haverão de encontrar, representantes quaisquer, à volta do posto para que os escolheram aquelas individualidades exuberantes que desde sempre manejam e controlam as próprias exuberâncias em detrimento das demais.

A única coisa a refrear essas individualidades infladas é a certeza de que os representantes contra quem se batem contam com base sólida, quando não crescente, de apoiadores. Tal apoio, como se vê, não pode ser intermitente: a democracia que conhecemos não tem piloto automático.

O excelente dessa conjuntura é ser ela exercício permanente da noção possível de 'coisa comum' (a possível numa democracia como esta que somos capazes de entender), capacitando-nos à execução plena, quando a concebermos, da 'coisa verdadeiramente comum'. Sem um significado sólido, ativo e amplamente aceito toda representação - e com isto se entenda 'todo signo' - é inconsistente e se dissipa.