10 dezembro 2016

Dois sentidos de 'coprofagia' na declaração de Francisco

O conhecimento do bem - ou o sentido para ele - é, ao que tudo indica, inato, como observou Epicteto há dois mil anos. O recém-nascido reagirá com clareza ao quanto lhe agrada ou desagrada, indicando já possuir o suficiente para de futuro desenvolver a compreensão de instâncias mais complexas de bem e mal. O sentimento de nojo parece ser uma manifestação suficientemente específica da mais genérica expressão de desagrado e segundo pesqusas desenvolver-se-á por volta do terceiro ano de vida. Parece também ser sentimento moldado pela cultura, uma vez haver pouca concordância entre indivíduos originários de distintos pontos do Planeta sobre o que lhes  inspira nojo, em meio a que é muito provável estarem as fezes.

Desse modo a comparação recentemente feita pelo Papa entre o consumo de notícias falsas e a coprofagia tem ao menos dois sentidos graves enquanto denúncia do modo de comportar-se de nossa sociedade. O primeiro diz respeito à infantilização: na primeiríssima infância tendemos todos a experimentar o sabor das próprias fezes, pelo menos, movidos pelo impulso de conhecer, que nesses tempos é fortemente guiado pelo paladar, além de pelo tato e pelo olfato, como tem informado a psicologia, e a compreensão de não se tratar de alimento virá depois de orientados para as rejeitarmos, manifesta no sentimento de nojo. Francisco descreve, assim, a intelecção inepta, infantil ou mal formada desses consumidores de mentiras jornalísticas, as quais têm por finalidade alijá-los de decisões cruciais concernindo seu próprio bem-estar na sociedade. Segundo ele a imprensa seria claramente coprofílica e em seu vício induziria o comportamento coprofágico da audiência, suposta inocente.

Entretanto fala-se aqui mormente em adultos que, embora não livres de infantilização intelectual, em grande número possuem boa escolaridade, além de acesso a outras fontes de informação que nestes tempos estão disponíveis na Internet em particular, por conseguinte tendo o suficiente em condições para formarem juízos diversos valendo-se do único método conhecido para esse fim, ou seja, o confronto de contrários ou contraditórios. Dizendo o mesmo em outros termos, é provável haver grande número de intelectos infantilizados entre os consumdores de factóides sensacionalistas da imprensa comprometida com políticas sociais regressivas, mas há também quantidade apreciável de indivíduos com plenas condições de constituirem juízos melhor fundamentados e que evdentemente as rejeitam. Trazendo para esse contexto a declaração de Francisco, há nela a distinção entre coprófilos, ou os forjadores de factóides, e coprófagos, o público destes. Dado haver dentre os consumidores esses com possibilidades de realizar o confronto de contrários e contraditórios com as notícias falsas, ora, eles estariam alinhados entre os que, como os jornalistas que as elaboram, extraem algum prazer do consumi-las, tratando-se portanto de coprófilos igualmente.

Mas a coprofila, ainda que desprezável por quem a não pratica, pode ser definida como sentimento autêntico por seu objeto. O coprófilo é suposto ter afeto, como indica sua designação, por isso que todas as culturas em tese rejeitam com mostras de nojo. Já quanto a 'coprófagia', é termo designando somente ingestão de fezes, a qual pode ocorrer de duas maneiras apenas: ou por inaptidão intelectual e, consequentemente, por não haver-se constituído o sentimento de nojo, como no caso da primeiríssima infância, ou por deliberação de subverter um consenso ainda que em prejuízo próprio do subversor, algo diretamente associável ao ato de terror suicida. A predileção específica por notícias falsas, de hábito caluniosas e bombásticas, não seria enfim fenômeno mensurável na quase totalidade dos praticantes da 'coprofagia' denunciada pelo Papa, nem na dos que diretamente associou à 'coprofilia', o que é com facilidade comprovável nas circunstãncias em que são eles os alvos da difamação: para um verdadeiro amante de dejetos não deverá haver problemas em que lhe atirem aquilo que autenticamente apreciam.

Este o segundo e mais grave sentido passível de extrair-se da declaração que, vindo de religioso com a reputação de Francisco, torna-se ainda mais séria, se tal é possível: teria implícita também a identificação, nessa forma de subversão social, de tintas de satanismo, que do ponto de vista cristão é a ritualização de todo o mal que tem por missão combater. Com grande sutileza - mas é possível também que involutariamente - Francisco faz coro com a seção não menos sensacionalista, entretanto, do folclore contemporâneo que acredita ver sinais de seja o advento, seja a presença real de Satã nos desdobramentos de fatos planetários nos recentes anos. No entanto, é mister observar, seguindo o seu já consagrado método de separar o alegórico, com frequência tido por factual, do genuinamente ético na doutrina de Cristo, não seria em absoluto justo supor que use da posição de Pontífice para fazer sensasionalismo: ao contrário, esse aspecto gravíssimo do que declarou  insere-se na metodologia mencionada na medida em que oferece fato - por conseguinte, palpável, cientificamente testável, por assim dizer - para demonstrar que o mal é apenas  ponto de vista, opinião, embora de hábito bem fundamentada pelas vítimas de atos de quem ignora que sua busca pelo que acredita ser bom só resulta em catástrofes, pelas quais será vitimado também.

De modo geral precisamos compreender melhor as meias verdades de ditados como 'o inferno está cheio de boas ou das melhores intenções' porque de intenções iguais o céu estará igualmente repleto e o que diferencia um do outro é, de um lado, aquilo em que resultaram tais intenções, o bem ou o mal, e de outro, o que determinou seus resultados, ou seja, uma maior ou menor ignorãncia do sujeito quanto ao que fez. O inferno, pois, seria o lugar dos mais ignorantes, condenação á primeira vista inequivocamente injusta. Observe-se, entretanto, que a condição perene de ignorãncia é um dos pouquíssimos conhecimentos certos, de comprovada validade, que possuímos, o que acarreta ou conformarmo-nos e, assim, até nos comprazermos nela, ou nos empenharmos em seguir dissipando-a o quanto nos for possível, parecendo não haver dúvida de ser esta última escolha a mais correta. Que se refine então, em vista disto, a afirmação quanto ao inferno ser o porto final dos mais ignorantes - o que em tese o céu poderia ser também - acrescentando-se que o maior pecado dos assim condenados seria justo a tolerância e mesmo o comprazimento de sua condição de ignorantes: precisamente o que parte considerável dos coprófagos das falsas notícias é suposto ser, CQMF (ou Como Quis Mostar Francisto).