09 maio 2019

A catástrofe somos nós!

O tragicômico é como encaramos o fato de o clima terrestre estar mudando  de maneira crescentemente errática: de um lado, os cientistas, francamente divididos entre culpar o capitalismo ou forças muito maiores, como fatores até então ignorados do sistema solar em sincronia com outros tantos saindo das entranhas da Terra, dois fronts que de necessidade não se excluem; na traseira deles, arrastados pelo debate, nós, 'o público', os maiores interessados, a passarmos os olhos por relatórios e reportagens sobre o tema com o espírito de isto não ser coisa para leigo entender, nada obstante repercutamos feito cornetas tontas e a cada dia, mais (em vista do evidente aumento dos reveses do tempo), quase tudo do assunto que nos cai no colo, sem uma palavra sequer sobre os méritos da controvérsia - porque, como já se sugeriu, isto seria coisa exclusiva de 'especialistas'.

Como consequência desse vício de delegar, ignoramos que ocorre de o nosso sistema de vida, capitalista, ser incompatível com o quadro já se apresentando, pouco importa o viés da ciência para a causa das reviravoltas climáticas: porque se é ele o verdadeiro causador, tem de ser contido (embora o McPherson, especialista 'maldito' da área, esteja certo de não adiantar mais coisa alguma além de encomendarmoa as próprias almas), e se não o é, de qualquer modo é incompatível com o cenário de um par de anos à frente, de sorte que o que devíamos estar fazendo, em vez de passarmos a vida a espernear para vir alguém dar algum jeitinho de todos cabermos nos parâmetros altamente excludentes do capital (coisa jamais ocorrida, mesmo quando fomos a décima ou a vigésima parte de quantos somos agora, e que jamais ocorrerá, por ser isto incompatível com o funcionamento do dinheiro), deveríamos mesmo é estar há anos discutindo feito gente grande alternativas sérias para o capitalismo e tudo que tem ele acarretado para nosso modo de vida, como a estrutura de governo, por exemplo, entre incontáveis pontos outros.

Mas em vista da incapacidade de demonstrarmos outra coisa que não o grau de nossa adição por dinheiro, para quem o tem de sobra e, por exigência mesmo do sistema, tem de continuar fazendo-o mais e mais, nada resta além de tirar o melhor proveito da oportunidade e ordenhar até a última gota a vaquinha da catástrofe climática, produzindo assim uma espiral que não é preciso ser gênio para deduzir onde vai dar: na situação-limite de ausência generalizada dos recursos mais básicos, da comida à Internet, passando por eletricidade e, ainda pior, pela água potável, não há dúvida de que essa será a guerra em que lutaremos, como sugeriu Einstein, com paus e pedras, mas sem que uma só bomba nuclear tenha sido detonada.

06 maio 2019

Da guerra desdenhada

Uma das virtudes do 'dinheirismo', do viés dos melhor posicionados na hierarquia a que de necessidade ele induz,  é a quase completa obliteração, em particular nos ocupantes dos estratos médio e inferior da sociedade, da sensibilidade para os limites entre paz e litígio. Não raro um ato exp!ícito de guerra - declarada ou não - pode passar por desvio circunstancial da normalidade até ser reiterado por outro ou até a governança soar o alarme.

Poucos sentem a permanente inquietação belicosa no cerne de instituições normalizadas, como a perspectiva de ascensão funcional, por exemplo, que até mesmo no interior de grupos cujos integrantes é suposto terem motivos de sobra para forjarem identidade solidária forte, como o dos escravos, é bastante eleger um ou uns poucos para a função de capataz e assim instaurar imperceptível e generalizada disputa que aos poucos dissolve toda possibilidade de consenso. Estenda-se esse modelo ao contexto do possuir-se ou não função remunerável no todo da sociedade, que de fato jamais precisou da totalidade dos indivíduos trabalhando simultaneamente para produzir o necessário e mesmo o 'supérfluo'.

Esses exemplos devem bastar para deixar claro que a grande maioria dos atuais habitantes humanos do Planeta jamais viveu em - ou sequer conheceu - alguma sociedade semelhante à que idealiza ser essa de que é parte. 'Idealiza', sim, porque a continuidade de todo grupo social depende em grande medida da chamada 'doutrinação', espécie de educação que se compartilha quando do contrato social constam pontos nebulosos, insustentáveis - por injustificáveis - sem menor ou maior dose de condicionamento.

Por isto se entende o valor meramente retórico assumido em sociedade como a nossa por idéias doutrinais como a de 'solidariedade', central para a constituição e manutenção do tecido social, bem como por derivadas suas, como a noção de 'amizade' ou a de 'família', todas sujeitas a relativização imponderável, não fosse esta justificável no uso do dinheiro para distribuir riqueza. E nada mais natural é essa condição tornar-se a permanente dum grupo doutrinado para naturalizar a artribuição de um cardinal arbitrário à força vital do indivíduo, número tanto menor - não raro podendo mesmo ser 'zero' - quanto mais fundamentalmente necessária for a função que desempenha no projeto comum de sobrevivência, e nada menos surpreendente, do mesmo modo, do que haver poucos de autenticamente resignados à má sorte, bem como poucos, dentre os que não se resignam, a manifestarem indignação e que, devido ao estremecimento generalizado que causam na teia social, são combatidos, quase sempre pelos demais todos, indiferentemente, quando o mero ignorá-los não bastou para os aquietar.

Na sociedade governada pelo 'dinheirismo' há certa predileção por manter tácitos os pressupostos do conflito, assim como a admissão da maior parte dos seus atos explícitos, espécie de exercício de tolerância máxima pautado pelo cultivo cuidado da hipocrisia. Por isso os sinais inequívocos do que de fato chamamos 'guerra' são detectados com dificuldade uma vez que se toleram, vivendo-se ao lado deles,  efeitos dos mais evidentes desses conflitos cabais, como a miséria: a guerra perpétua do 'dinheirismo' a produz nesse silêncio acordado à volta das tolerâncias permanentemente assediadas, a mesma miséria resultante das guerras de fato, é provável que diferindo desta somente por ser em aparência menos generalizada.

Curioso é com efeito haver contingente significativo de indivíduos intolerantes a esses sinais nebulosos de flagrante conflito e que efetivamente o denunciam, mas que o façam dum viés cuja eficiência é mais do que discutível, uma vez que autopoliciam sua denúncia para dar a entender que apenas relativa a gravidade do contexto, motivados pe!a esperança vã de sobre essa base, a da atribuição de valor arbitrário ao trabalho do indivíduo, ser possível superar todas as dissensões que, não por acaso, ela própria cria. O propósito - não menos alimentado pela hipocrisia - de preservar a todo custo contrato social que por princípio não tem como sustentar-se nem produzir efeitos diferentes não poderia, ele próprio, ter efeito mais tóxico, revelando e propagando a ignorância em cujos interstícios vêm instalar-se iniciativas ainda mais atrevida e explicitamente indistinguíveis da guerra, a de fato, como o extermínio sumário de toda dissidência do pensamento hegemônico, desta feita lavradas em lei.

O quadro geral não poderia ter mais clareza, confirmada ostensivamente pela consulta à História, seja qual for o período observado: existir sob tensão maior - e intolerável - ou menor - e não por isso insofrida - é a norma permitida pelo 'dinheirismo', ainda que, por exemplo, se homogeinize a valoração do trabalho, pautando-a pelo quanto ele dura, como de maneira assistemática se procura ainda fazer, porque mesmo assim permanece franqueada a circulação da cobiça, que ao custo mesmo de grandes sacrifícios individuais tenderá a produzir o que excede o necessário, que terá de viabilizar-se em termos econômicos, o que só se dá com a criação artificiosa de necessidade, para não dizer de adição, e assim de mais cobiça, num ciclo cujo fim não difere do causado pela disparidade de valor do trabalho independentemente do quanto dure. E a solução, para muitos decorrência necessária de alguma conflagração final ou catástrofe que determine maneira diversa de distribuir riqueza, está no entanto à distância de um passo único, o de rejeitar de uma vez só e coletivamente as 'facilidades' do uso do dinheiro, mas que não pode ser dado sem longas conversações que, não devido à duração, mas à profundidade que têm de assumir, não vêm atraindo a necessária, urgente consideração.