06 maio 2019

Da guerra desdenhada

Uma das virtudes do 'dinheirismo', do viés dos melhor posicionados na hierarquia a que de necessidade ele induz,  é a quase completa obliteração, em particular nos ocupantes dos estratos médio e inferior da sociedade, da sensibilidade para os limites entre paz e litígio. Não raro um ato exp!ícito de guerra - declarada ou não - pode passar por desvio circunstancial da normalidade até ser reiterado por outro ou até a governança soar o alarme.

Poucos sentem a permanente inquietação belicosa no cerne de instituições normalizadas, como a perspectiva de ascensão funcional, por exemplo, que até mesmo no interior de grupos cujos integrantes é suposto terem motivos de sobra para forjarem identidade solidária forte, como o dos escravos, é bastante eleger um ou uns poucos para a função de capataz e assim instaurar imperceptível e generalizada disputa que aos poucos dissolve toda possibilidade de consenso. Estenda-se esse modelo ao contexto do possuir-se ou não função remunerável no todo da sociedade, que de fato jamais precisou da totalidade dos indivíduos trabalhando simultaneamente para produzir o necessário e mesmo o 'supérfluo'.

Esses exemplos devem bastar para deixar claro que a grande maioria dos atuais habitantes humanos do Planeta jamais viveu em - ou sequer conheceu - alguma sociedade semelhante à que idealiza ser essa de que é parte. 'Idealiza', sim, porque a continuidade de todo grupo social depende em grande medida da chamada 'doutrinação', espécie de educação que se compartilha quando do contrato social constam pontos nebulosos, insustentáveis - por injustificáveis - sem menor ou maior dose de condicionamento.

Por isto se entende o valor meramente retórico assumido em sociedade como a nossa por idéias doutrinais como a de 'solidariedade', central para a constituição e manutenção do tecido social, bem como por derivadas suas, como a noção de 'amizade' ou a de 'família', todas sujeitas a relativização imponderável, não fosse esta justificável no uso do dinheiro para distribuir riqueza. E nada mais natural é essa condição tornar-se a permanente dum grupo doutrinado para naturalizar a artribuição de um cardinal arbitrário à força vital do indivíduo, número tanto menor - não raro podendo mesmo ser 'zero' - quanto mais fundamentalmente necessária for a função que desempenha no projeto comum de sobrevivência, e nada menos surpreendente, do mesmo modo, do que haver poucos de autenticamente resignados à má sorte, bem como poucos, dentre os que não se resignam, a manifestarem indignação e que, devido ao estremecimento generalizado que causam na teia social, são combatidos, quase sempre pelos demais todos, indiferentemente, quando o mero ignorá-los não bastou para os aquietar.

Na sociedade governada pelo 'dinheirismo' há certa predileção por manter tácitos os pressupostos do conflito, assim como a admissão da maior parte dos seus atos explícitos, espécie de exercício de tolerância máxima pautado pelo cultivo cuidado da hipocrisia. Por isso os sinais inequívocos do que de fato chamamos 'guerra' são detectados com dificuldade uma vez que se toleram, vivendo-se ao lado deles,  efeitos dos mais evidentes desses conflitos cabais, como a miséria: a guerra perpétua do 'dinheirismo' a produz nesse silêncio acordado à volta das tolerâncias permanentemente assediadas, a mesma miséria resultante das guerras de fato, é provável que diferindo desta somente por ser em aparência menos generalizada.

Curioso é com efeito haver contingente significativo de indivíduos intolerantes a esses sinais nebulosos de flagrante conflito e que efetivamente o denunciam, mas que o façam dum viés cuja eficiência é mais do que discutível, uma vez que autopoliciam sua denúncia para dar a entender que apenas relativa a gravidade do contexto, motivados pe!a esperança vã de sobre essa base, a da atribuição de valor arbitrário ao trabalho do indivíduo, ser possível superar todas as dissensões que, não por acaso, ela própria cria. O propósito - não menos alimentado pela hipocrisia - de preservar a todo custo contrato social que por princípio não tem como sustentar-se nem produzir efeitos diferentes não poderia, ele próprio, ter efeito mais tóxico, revelando e propagando a ignorância em cujos interstícios vêm instalar-se iniciativas ainda mais atrevida e explicitamente indistinguíveis da guerra, a de fato, como o extermínio sumário de toda dissidência do pensamento hegemônico, desta feita lavradas em lei.

O quadro geral não poderia ter mais clareza, confirmada ostensivamente pela consulta à História, seja qual for o período observado: existir sob tensão maior - e intolerável - ou menor - e não por isso insofrida - é a norma permitida pelo 'dinheirismo', ainda que, por exemplo, se homogeinize a valoração do trabalho, pautando-a pelo quanto ele dura, como de maneira assistemática se procura ainda fazer, porque mesmo assim permanece franqueada a circulação da cobiça, que ao custo mesmo de grandes sacrifícios individuais tenderá a produzir o que excede o necessário, que terá de viabilizar-se em termos econômicos, o que só se dá com a criação artificiosa de necessidade, para não dizer de adição, e assim de mais cobiça, num ciclo cujo fim não difere do causado pela disparidade de valor do trabalho independentemente do quanto dure. E a solução, para muitos decorrência necessária de alguma conflagração final ou catástrofe que determine maneira diversa de distribuir riqueza, está no entanto à distância de um passo único, o de rejeitar de uma vez só e coletivamente as 'facilidades' do uso do dinheiro, mas que não pode ser dado sem longas conversações que, não devido à duração, mas à profundidade que têm de assumir, não vêm atraindo a necessária, urgente consideração.

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