23 março 2018

Em torno do 'Estado' que o neoliberalismo quer

Enquanto doutrina sócio econômica o capitalismo dá sinais de haver chegado a um modo idiossincrático de despotismo esclarecido após a longa elaboração da ideologia neoliberal. Os traços genéricos deste não discrepam dos normalmente atribuídos ao despotismo esclarecido político, que em linhas gerais se resumem a um centro de poder absoluto atuando de modo menos desfavorável em relação ao povo do que o esperado do déspota típico. De modo que o neoliberalismo não pende mais, como a doutrina capitalista tradicional, para justificar ou mesmo dissimular os traços do uso do dinheiro que inevitável e tragicamente resultam em danos para o tecido social (e conflitam com sistemas éticos pré- ou pós-iluministas), passando a fazer, ao contrário, sua apologia, confiado em que duma perpectiva mais ampla e em médio ou longo prazo levariam a sociedade a algo preconizado por socialismos 'não-radicais' ou muito próximo disto. A conhecida metáfora do 'bolo', que precisa crescer antes de ser 'dividido', é emblemática da fé neoliberal.

Daí aquela regrinha banal embutida na doutrinação despótico-esclarecida dos neoliberais: dinheiro bom é dinheiro desregulado, movendo-se ao sabor de acordos (contratos), estes, sim, passíveis de supervisão pelo Estado, de modo a garantir que se cumpram, e só. O contrário disto - o controle da circulação do dinheiro com regras (leis) que na verdade prescrevem o conteúdo do contratado, isto é, que ditam ou precedem os acordos - freia o 'mercado' e tem por limite máximo fazer dele, dinheiro, brinquedo tolo, mera formalidade em que os atores todos são poupados de surpresas ou sobressaltos nas transações que realizam, uma vez que conhecem em detalhe cada passo do processo econômico desde, por exemplo, o recebimento de uma remuneração até seu esgotamento no que invariavelmente poderão ou terão de comprar,  ciclo que se reinicia a cada remuneração nova, para sempre. Num cenário como este o conceito de dinheiro teria extirpada sua essência competitiva, estaria 'purificado' - por assim dizer - dos perigos de sua natureza lúdica e, o pior, seu uso carregaria em regime permanente uma tensão, uma vez que o potencial para competir permanece latente, coibido por força externa, a da lei de um 'Estado forte' (ou autoritário).

Por natureza própria o dinheiro é jogo de azar e a moeda o maço de cartas com que é jogado, justo como o pôquer, que com efeito o celebra na permissão do blefe, jamais a do roubo (é natural), enquanto o Estado tem a função do xerife, de prevenir quando possível o confronto dos jogadores num lance fatal - para si e quem estiver ao redor. É em nome destes que cercam o núcleo potencialmente perigoso e explosivo da jogatina que a lei usa justificar sua intervenção, cujo limite, esgotados os recursos para manter num mínimo a ordem tolerável, é o da proibição total da jogata, se é que, no caso do pôquer, há sentido em haver os estágios intermediários até ser proibido de uma vez e nos quais se sugeririam alterações das regras do jogo que, evidentemente, o desfigurariam, caso este das interferências do Estado no universo da finança, que redundam nos consequentes protestos dos doutrinadores neoliberais.

O neoliberalismo, é bem provável, não existiria, não fossem as investidas críticas sobre o papel do Estado e do dinheiro nas disfunções da sociedade empreendidas pelas doutrinas que se seguiram à Revolução Francesa e como um todo foram adjetivadas 'de esquerda' ou 'esquerdistas'. O pensamento neoliberal se constitui enquanto resposta às soluções radicais da esquerda para o saneanento da sociedade, que têm por fundamento a identificação de Estado e dinheiro como o cerne da disfunção social, confluindo para a meta de eliminar ambos.

Dado curioso é essa habilidade de absorver traços seminais do ideal esquerdista desenvolvida pelos teóricos neoliberais, como o 'anti-estatismo' e a garantia de se produzir uma distribuição equânime ou, no mínimo, satisfatória da riqueza, mesmo sem a necessária eliminação do conceito de dinheiro constante de propostas puristas da esquerda como os modelos de anarquismo. Esse aspecto, que do viés anarquista não passaria de uma tola e mal ajambrada amontoação de conceitos, é o que coloca o neoliberalismo em rota de colisão frontal com o comunismo que, a despeito das idas e vindas quanto a o quê o termo deva significar, pode ser entendido como a receita compreendendo Estado forte no controle da distribuição de riqueza intermediada pelo dinheiro à guisa de fase transitória na direção de extinguir as máquinas governamental e financeira, ou seja, na direção do Estado anarquista. O conceito de 'anarco-capitalismo', mais do que ultrajante do viés anarquista, não é senão a exposição do consequente limite da rejeição ao Estado constante da ideia de Estado mínimo dos neoliberais.

Todo este quadro trai uma multissecular controvérsia em torno da noção de Estado desde que, de Hobbes a Rousseau, passando por Locke, o Iluminismo se enamorou da ideia de 'contrato social' e a identificou com a de 'Estado-ele-mesmo' ou com o que está no seu cerne. De inconveniente na noção iluminista de contrato social é a crença de a grei humana ter chegado de comum acordo ao estabelecimento da governança, o que é verossímil, embora não o seja o motivo que presumidamente a levou a isso, 'pormenor' altamente discutível, se não de todo falso: a submissão a um governo (ou liderança) seria a única ou melhor forma de prevenir o pendor inerente aos indivíduos em associações para a destruição recíproca! Os partidários do Estado-enquanto-contrato-social não raro lançaram (e ainda lançam) mão de por em paralelo as condições gregárias nossas e as de outras espécies à guisa de demonstrar a necessária presença do líder estabilizador para a coesão sustentável das sociedades, embora o passo das descobertas em áreas como a do comportamento e psicologia animais, na zoologia, da arqueologia, da antropologia e da história venham apondo dúvidas sérias, no mínimo, a essa concepção de sociedade.

No entanto a ideia de 'contrato social' traz em si a 'revelação' de que num grupo de indivíduos quaisquer, não importa o que se passe, tudo deriva necessariamente da anuência de seus membros, isto é, a 'revelação' da natureza democrática de modalidade direta inerente à dinâmica interna das greis. Foi desta derivação da concepção de 'contrato social' que surgiram tanto reações como a da sentença "o Estado sou eu", atrevida e atribuída ao 'absoluto' Luís XIV, quanto o resultado democrático da Revolução Americana, bem como o que motivou os quase esquecidos revoltosos no Haiti. Além disso hoje começam também a firmar-se, via zoologia, arqueologia e antropologia, visões de o funcionamento das greis animais em geral aproximar-se mais dum anarquismo em que entretanto se toleram comportamentos como a poligamia conquistada em disputas (ou jogos) que podem envolver até a violência, e de nós humanos termos 'escolhido' organizar-nos em torno de lideranças muito recentemente, sem que isto tenha advindo do propósito de refrear um suposto pendor para a destruição recíproca, uma vez não haver nessas sociedade pré-históricas sinais de conflitos que sequer ameaçassem, muito menos tenham desfeito os liames sociais.

Essa nova e não deliberadamente narrada história, feita dos resíduos deixados pela humanidade de como ela se constituía enquanto organismo social, sugere que o verdadeiro 'elo perdido' da sociologia (e da economia política) seriam os motivos a nos terem levado do compartilhamento de riquezas à troca delas por equivalência do trabalho investido em produzi-las, ou escambo, em que está implícito o estabelecimento ou a atribuição de valores para os ítens trocados, assim determinando o aparecimento do conceito de dinheiro. De modo geral assume-se que essa noção muito simples, além de verdadeiramente engenhosa e revolucionária,  surgiu enquanto solução para certos entraves do escambo, notadamente a ausência de certo produto interessando a pelo menos uma das partes, circunstância potencialmente paralisante para as negociações. A eleição de um dos artigos intercambiados para a função de intermediar o intercâmbio dos demais, além de prevenir a paralisação dos negócios, mostrou-se utilíssima no processo de atribuição de valor ao negociado e evoluiu no sentido de atingir a portabilidade ideal, bem como a garantia de ser respeitado o valor que representava, obtida com a cunhagem da moeda garantida por um Estado.

O mencionado 'elo perdido' da transformação de uma sociedade que compartilha em outra que pratica o escambo e, em consequência, descobre o dinheiro é importante para compreender-se também a estrutura deste Estado sob que ainda se vive, muito embora haja bastante consenso ao redor de ele ter iniciado nas primeiras cidades-estado, que por sua vez nasceram dos que teriam sido pontos de encontro de quem dispunha de algo a ser trocado, tornados em seguida entrepostos capazes de inclusive permitir a estada dos negociantes, atingindo finalmente a condição de cidades. Nada impede de considerar-se que ao menos umas tantas cidades-estado tenham surgido diretamente de assentamentos agrícolas que centralizassem o comércio em certa região, mas a estrutura que se estabeleceria em todas elas sugere fortemente a ocorrência do escambo e a necessidade de uma intermediação progressivamente mais forte nas querelas que suscitasse, a qual derivou, por sua vez, na centralização da economia por meio de instrumentos coercitivos como leis, braço armado do Estado e, finalmente, moeda. Em termos estruturais este Estado sob que vivemos descende imediatamente da 'mentalidade' do escambo ou, mais provavelmente, dessa modalidade do escambo aparecida com a descoberta do dinheiro, e se não isso, ao menos ele evoluiu em paralelo e em conivência com todas as idiossincrasias do universo financeiro.

De curioso, irônico e paradoxal em todo esse processo com respeito à ideologia neoliberal em sua 'guerra santa' contra o 'Estado' é constatar que não passa de reencenação do tema batido do criador voltanto-se contra a criatura que o engole, além de evocação do que seria espécie de 'era de ouro' em que o Estado presumivelmente não excedia a função de mediador moral dos contratos que sobre quaisquer bases as partes em escambo estabelecessem, ou seja, sorte de 'fundamentalismo' em economia. Não bastasse o estorvo de julgar tendo alicerce assim instável, uma mediação - por assim dizer - não-coercitiva não teria como fazer valer em bases exclusivamente morais o seu julgamento, uma vez que poderia haver motivos de sobra para uma ou ambas as partes o rejeitarem: nada de mais consequente, pois, que o mediador evoluísse para estabelecer ele mesmo os princípios a partir de que julgar, bem como os meios mais 'convincentes' de garantir a 'anuência' dos contratados a seu julgamento, pois afinal estava em jogo o seu ganha-pão, vez que não é inverossímil concluir daí que a noção de imposto nasceu 'pronta', do direito que o Estado teria ao pagamento por seu difícil e 'delicado' trabalho de mediador.

No fundo todo doutrinador do neoliberalismo sabe que na ausência do 'Estado' (nome que insiste em dar a 'estrutura de governo'ou 'govenança') forte a mentalidade ainda hoje predominante, de não haver alternativa para o uso do dinheiro, é o potencial fomentador, sim, de toda sorte de conflito, incluindo a guerra, sabendo também que 'anarco-capitalismo' é ideia insustentável, se não descrição de fato inócua, embora hiperbólica, da estrutura desse nosso Estado que em fim de contas não é senão um dentre os partícipes do jogo do dinheiro em larga escala ou, ainda, a cadeira cobiçada dessa brincadeira em que somente um desses grandes jogadores pode sentar-se por vez. Como todo despotismo esclarecido o neoliberalismo é uma coleção de artifícios populistas, isto é, ideologia (ou propaganda), principalmente, e certas deliberações para o 'mercado' visando manter a massa humana em sua rotina ignorante de dirigir o fluxo de distribuição de riqueza a uma fração da população, porque os seus ideólogos sabem também inexistir possibilidade real de o conceito de dinheiro promover senão discrepâncias econômicas, algumas até toleráveis, salvo se submetido a severa regulação, o que, como se percebe, o inutiliza ou, o que dá no mesmo, o transforma num brinquedo sem graça.

21 março 2018

Húbris e anarquismo

Trabalho imprescindível para todos os que precisam orientar no tempo suas 'vocações' para a esquerda, 'Anarquismo', de G. Woodcock (poeta canadense e pensador anarquista do século passado), vai muito além de reproduzir cronologia e expor teoria. Ali o simpatizante do hoje popular marxismo pode perceber como e por que esse sistema aparece de uma linha já solidificada de propostas de superação desse Estado-como-o-conhecemos, iniciada com o 'Justiça Política' de Godwin e que só após Proudhon foi chamada de 'anarquista'.

'Anarquismo' foi impresso em 1962 e em vista do seu escopo é provável que Woodcock o tenha planejado desde os anos 50, período de florescimento do 'sonho americano' e sua ambição de constituir uma 'classe média' cujas condições materiais fariam corar de vergonha ou inveja o projeto espartano de proletariado dos soviéticos. Na introdução, em que se contrastam apelos e reticências do anarquismo em geral, é possível entrever a sugestão de que a hipótese de a proposta materialista dos americanos ser empreendida por um Estado proletário não consiste em delineamento inverossímil do que sonhava Marx.

O marxismo estava seguro de que sua conquista da máquina de governo já alimentada pela produção em escala industrial produziria, se convenientemente admimistrada, a exuberância que o anarquista descartava por princípio e não sem motivo. Logo após publicar 'Justiça Política', por exemplo, Godwin foi acusado por Malthus de propor sistema de prosperidade que levaria a humanidade a exacerbar sua tendência para superar em população a capacidade de a Terra lhe prover subsistência, assim expondo-se a calamidades intermitentes por cujo intermédio o habitat restauraria o próprio equilíbrio. A resposta de Godwin enfatiza sua certeza de o progresso ininterrupto da sociedade anarquista ser função do constante aperfeiçoamento de conhecimento e uso da razão, franqueado pelo fim da coerção dos governos.

Mostra do quanto em geral temos em conta o nosso potencial mental enquanto agente maior de nossa sobrevivência, o argumento de Godwin permanece semi-ignorado até o golpe que supostamente o aniquilaria, vindo da importância conferida à competição no Evolucionismo, apesar de Darwin ter insistido posterirormente para que também não se desdenhasse o papel evidente e seminal da cooperação entre indivíduos de um mesmo grupo. Geógrafo respeitado que por anos estudou habitats siberianos, Kropotkin dará ao problema resposta definitiva no início do século passado, mostrando aos 'darwinistas sociais' o óbvio, isto é, o quão incompreensível seria a formação de greis se servisse somente para o confronto e a destruição recíproca dos indivíduos, ou o quão disfuncional seria a natureza se entre as diferentes espécies a disputa sobrepujasse a boa-vizinhança. De qualquer modo o anarquismo de viés pacifista já havia optado bem antes por conservar sua confiança na capacidade de o discernimento humano manter com o meio-ambiente diálogo de alto nível. Ao marxismo, que via nisso a desculpa dos anarquistas para proporem 'socialização da pobreza', por questão de bom senso é atribuível a mesma confiança, bem como outra, mas insustentável, na capacidade de o Planeta sobreviver à nossa húbris - a única que nos é possível e igualmente cultivada, nutrida e acariciada pelo inimigo declarado do marxismo (e do anarquismo), o capitalismo.

Ao concluir a escrita de 'Anarquismo' Woodcock na certa não previa a sobrevida da classe 'única' soviética que, a despeito da zombaria 'ocidental', alimentaria por ainda trinta anos o estado de espírito predileto de seu rival maior, o de permanente alarme.  Quanto ao 'sonho americano', não se imaginava que passasse lentamente ao estado de pesadelo interminável ao retornar de sua primeira viagem à Lua ou de uma guerra que, coisa de sonho, achou por bem perder. Ainda assim foi espalhado mundo a fora, em versão simplificada ou adulterada, mas nem por isso sustentável sem que contemos com o mínimo de três ou cinco planetas para que todos o sonhemos sem sobressaltos.

Resultado: Malthus, ao que parece, não teve ainda o seu ponto provado, na certa por culpa da 'mão invisível', de Smith, que tem cuidado de manter viva e miserável, além de crescente, a porção maior da espécie humana, desse modo retardando o colapso final do meio-ambiente. Até o presente a humanidade tem evitado reconhecer-se inepta com a atribuição de todas as suas misérias ao caos comportamental dum mercado a que o uso do dinheiro impõe a paradoxal condição de ser 'livre'. Do seu lado o capitalismo financiou a demonstração de o luxo não ser mesmo coisa para todos, o contrário do que ele, o marxismo e um certo poeta acreditam. E apesar de 'franciscano' (ou 'estóico'), o projeto anarquista ainda não foi descartado com a proliferação de marxistas e dos moderados socialistas, embora hoje atue sob disfarces que visam distanciá-lo de soluções violentas que em seu nome o desespero de uns tantos oprimidos adotou, também conhecidas por 'terrorismo'.

Em essência ou congenitamente o anarquismo não pode ser senão pacifismo, embora devido às soluções múltiplas que se propuseram para aviar sua implementação - etre elas o marxismo - tenha-se tornado por vezes confuso para quem alimenta a urgência justa de ver-se livre de coações que, não bastasse o serem violência, são inúteis, improdutivas. Por isso ele tem circulado o mundo sem quase anunciar o próprio nome e vestindo-se, por exemplo, com a exuberância sugerida nas ideias do genial Jacque Fresco, as de uma sociedade inteiramente apoiada na mecanização e no compartilhamento da produção, além de orientada exclusivamente pelo método científico. À parte o risco de tornar-se uma República platônica (ou até um Estado marxista), a proposta de Fresco - Projeto Vênus - mantém os mesmos traços da confiança depositada por Godwin e Kropotkin no potencial da mente humana: sem opressão seríamos todos sábios (ou tenderíamos vertiginosamente para o ser).

Em certo contraste com o Projeto Vênus, que influenciou iniciativas como o Movimento Zeitgeist de Peter Joseph, há o Planeta Ubuntu, proposta sul-africana perfilada com o sentido dado por Kropotkin ao problemático conceito de 'propaganda do dever', contrário ao que lhe dava quem compreendia o 'dever' como supressão do Estado opressor por quaisquer meios, incluindo os violentos e mesmo quando não necessários. Na visão de Kropotkin a ação a ser propagada é a construtiva, ou seja, a que demonstra em pura prática, sem consistir em prenúncio do 'ghandismo', a inutilidade de manter-se a adesão ao modelo corrente de sociedade. É isto o que empreende o Planeta Ubuntu - e com sucesso, segundo anuncia - ao convidar indivíduos em certas comunidades pequenas a oferecerem semanalmente parte do seu trabalho (cerca de três horas) para em cooperação produzirem o que o sistema social defeituoso em que vivemos é incapaz. Godwin e Kropotkin já haviam tratado do quão eficiente e maior seria nossa produtividade se orientada pelo objetivo fundamental de satisfazer necessidades, exceto a de gerar dinheiro. Além do mais é preciso gerar exemplo, demonstrar que e como é possível um mundo sem dinheiro.

A leitura de 'Anarquismo' de Woodcock oferece oportunidade para refletir-se sobre a história persistentemente trágica da presença no mundo dos ideais de esquerda, que não se inicia, mas se torna mais intensa, com a Revolução Francesa. Ali se percebe que o conceito de húbris, em princípio responsável pelo desdém do marxismo pelas ambições do anarquismo, deriva na verdade da pouca confiança de alguns pensadores da esquerda no potencial do intelecto humano enquanto traço universal da espécie, o que se reflete naturalmente sobre eles próprios e termina por induzi-los a justificarem a adoção, em suas estratégias de combate à opressão, da opressão ela mesma ou dos comportamentos e ideias que a determinam no sistema opressivo que acreditam combater. Em face do anarquismo o marxismo pode ser definido como artifício do desespero, emulação por certo irrefletida e infernal, mas bem-intencionada, do quanto ambos mais desprezam.

Woodcock concentra-se mais na dimensão política, essa de que por vezes se presume ser possível falar sem o concurso ostensivo da dimensão econômica, hipótese que a exaustiva e obsessiva descrição feita por Marx da dinâmica do 'capital' descarta. Entretanto a compreensão da economia falha em prover o suficiente para a sociedade metamorfosear-se sem que uma terceira dimensão, a intelectiva, seja aplicada à identificação e à análise da raiz evidente de nosso purgatório social e assim construir o sentimento indissolvível de vexame e repúdio por permanecermos há tanto tempo nele. A certeza de ser a noção de dinheiro a responsável por todas as nossas misérias, longe de consensual, tem sido também inefetiva no provimento do necessário para nos envergonharmos da trágica distribuição da riqueza (que por definição é tudo quanto o trabalho é capaz de produzir). Apesar de em boa medida comprometidas com a História, grande parte das visões envolvendo o papel do dinheiro no nosso contrato social é insuficiente para suscitar algo além da falsa impressão de ser possível usá-lo - e mesmo de já ter sido usado - de algum modo indiscutivelmente justo.

Mas se não foi possível para Woodcock - por quaisquer razões - discutir em profundidade, em 'Anarquismo', esse aspecto estrutural do Estado sob que vivemos e temos vivido há milênios, é certo que em muitas de suas passagens o leitor achará vestígios do que o levará, se de fato interessado e persistente, a empreender por si próprio essa discussão. Afinal uma das virtudes desse livro seria a de mostrar que, se possui uma húbris, até nisso o anarquismo é pura e boa subversão: pois só por modéstia, tendo por oriente a moderação, poderá a capacidade intelectiva humana, paradoxalmente, vangloriar-se do que faz (ou fará) no mundo ao seu redor. Paradoxo antigo, de qualquer modo.