21 março 2018

Húbris e anarquismo

Trabalho imprescindível para todos os que precisam orientar no tempo suas 'vocações' para a esquerda, 'Anarquismo', de G. Woodcock (poeta canadense e pensador anarquista do século passado), vai muito além de reproduzir cronologia e expor teoria. Ali o simpatizante do hoje popular marxismo pode perceber como e por que esse sistema aparece de uma linha já solidificada de propostas de superação desse Estado-como-o-conhecemos, iniciada com o 'Justiça Política' de Godwin e que só após Proudhon foi chamada de 'anarquista'.

'Anarquismo' foi impresso em 1962 e em vista do seu escopo é provável que Woodcock o tenha planejado desde os anos 50, período de florescimento do 'sonho americano' e sua ambição de constituir uma 'classe média' cujas condições materiais fariam corar de vergonha ou inveja o projeto espartano de proletariado dos soviéticos. Na introdução, em que se contrastam apelos e reticências do anarquismo em geral, é possível entrever a sugestão de que a hipótese de a proposta materialista dos americanos ser empreendida por um Estado proletário não consiste em delineamento inverossímil do que sonhava Marx.

O marxismo estava seguro de que sua conquista da máquina de governo já alimentada pela produção em escala industrial produziria, se convenientemente admimistrada, a exuberância que o anarquista descartava por princípio e não sem motivo. Logo após publicar 'Justiça Política', por exemplo, Godwin foi acusado por Malthus de propor sistema de prosperidade que levaria a humanidade a exacerbar sua tendência para superar em população a capacidade de a Terra lhe prover subsistência, assim expondo-se a calamidades intermitentes por cujo intermédio o habitat restauraria o próprio equilíbrio. A resposta de Godwin enfatiza sua certeza de o progresso ininterrupto da sociedade anarquista ser função do constante aperfeiçoamento de conhecimento e uso da razão, franqueado pelo fim da coerção dos governos.

Mostra do quanto em geral temos em conta o nosso potencial mental enquanto agente maior de nossa sobrevivência, o argumento de Godwin permanece semi-ignorado até o golpe que supostamente o aniquilaria, vindo da importância conferida à competição no Evolucionismo, apesar de Darwin ter insistido posterirormente para que também não se desdenhasse o papel evidente e seminal da cooperação entre indivíduos de um mesmo grupo. Geógrafo respeitado que por anos estudou habitats siberianos, Kropotkin dará ao problema resposta definitiva no início do século passado, mostrando aos 'darwinistas sociais' o óbvio, isto é, o quão incompreensível seria a formação de greis se servisse somente para o confronto e a destruição recíproca dos indivíduos, ou o quão disfuncional seria a natureza se entre as diferentes espécies a disputa sobrepujasse a boa-vizinhança. De qualquer modo o anarquismo de viés pacifista já havia optado bem antes por conservar sua confiança na capacidade de o discernimento humano manter com o meio-ambiente diálogo de alto nível. Ao marxismo, que via nisso a desculpa dos anarquistas para proporem 'socialização da pobreza', por questão de bom senso é atribuível a mesma confiança, bem como outra, mas insustentável, na capacidade de o Planeta sobreviver à nossa húbris - a única que nos é possível e igualmente cultivada, nutrida e acariciada pelo inimigo declarado do marxismo (e do anarquismo), o capitalismo.

Ao concluir a escrita de 'Anarquismo' Woodcock na certa não previa a sobrevida da classe 'única' soviética que, a despeito da zombaria 'ocidental', alimentaria por ainda trinta anos o estado de espírito predileto de seu rival maior, o de permanente alarme.  Quanto ao 'sonho americano', não se imaginava que passasse lentamente ao estado de pesadelo interminável ao retornar de sua primeira viagem à Lua ou de uma guerra que, coisa de sonho, achou por bem perder. Ainda assim foi espalhado mundo a fora, em versão simplificada ou adulterada, mas nem por isso sustentável sem que contemos com o mínimo de três ou cinco planetas para que todos o sonhemos sem sobressaltos.

Resultado: Malthus, ao que parece, não teve ainda o seu ponto provado, na certa por culpa da 'mão invisível', de Smith, que tem cuidado de manter viva e miserável, além de crescente, a porção maior da espécie humana, desse modo retardando o colapso final do meio-ambiente. Até o presente a humanidade tem evitado reconhecer-se inepta com a atribuição de todas as suas misérias ao caos comportamental dum mercado a que o uso do dinheiro impõe a paradoxal condição de ser 'livre'. Do seu lado o capitalismo financiou a demonstração de o luxo não ser mesmo coisa para todos, o contrário do que ele, o marxismo e um certo poeta acreditam. E apesar de 'franciscano' (ou 'estóico'), o projeto anarquista ainda não foi descartado com a proliferação de marxistas e dos moderados socialistas, embora hoje atue sob disfarces que visam distanciá-lo de soluções violentas que em seu nome o desespero de uns tantos oprimidos adotou, também conhecidas por 'terrorismo'.

Em essência ou congenitamente o anarquismo não pode ser senão pacifismo, embora devido às soluções múltiplas que se propuseram para aviar sua implementação - etre elas o marxismo - tenha-se tornado por vezes confuso para quem alimenta a urgência justa de ver-se livre de coações que, não bastasse o serem violência, são inúteis, improdutivas. Por isso ele tem circulado o mundo sem quase anunciar o próprio nome e vestindo-se, por exemplo, com a exuberância sugerida nas ideias do genial Jacque Fresco, as de uma sociedade inteiramente apoiada na mecanização e no compartilhamento da produção, além de orientada exclusivamente pelo método científico. À parte o risco de tornar-se uma República platônica (ou até um Estado marxista), a proposta de Fresco - Projeto Vênus - mantém os mesmos traços da confiança depositada por Godwin e Kropotkin no potencial da mente humana: sem opressão seríamos todos sábios (ou tenderíamos vertiginosamente para o ser).

Em certo contraste com o Projeto Vênus, que influenciou iniciativas como o Movimento Zeitgeist de Peter Joseph, há o Planeta Ubuntu, proposta sul-africana perfilada com o sentido dado por Kropotkin ao problemático conceito de 'propaganda do dever', contrário ao que lhe dava quem compreendia o 'dever' como supressão do Estado opressor por quaisquer meios, incluindo os violentos e mesmo quando não necessários. Na visão de Kropotkin a ação a ser propagada é a construtiva, ou seja, a que demonstra em pura prática, sem consistir em prenúncio do 'ghandismo', a inutilidade de manter-se a adesão ao modelo corrente de sociedade. É isto o que empreende o Planeta Ubuntu - e com sucesso, segundo anuncia - ao convidar indivíduos em certas comunidades pequenas a oferecerem semanalmente parte do seu trabalho (cerca de três horas) para em cooperação produzirem o que o sistema social defeituoso em que vivemos é incapaz. Godwin e Kropotkin já haviam tratado do quão eficiente e maior seria nossa produtividade se orientada pelo objetivo fundamental de satisfazer necessidades, exceto a de gerar dinheiro. Além do mais é preciso gerar exemplo, demonstrar que e como é possível um mundo sem dinheiro.

A leitura de 'Anarquismo' de Woodcock oferece oportunidade para refletir-se sobre a história persistentemente trágica da presença no mundo dos ideais de esquerda, que não se inicia, mas se torna mais intensa, com a Revolução Francesa. Ali se percebe que o conceito de húbris, em princípio responsável pelo desdém do marxismo pelas ambições do anarquismo, deriva na verdade da pouca confiança de alguns pensadores da esquerda no potencial do intelecto humano enquanto traço universal da espécie, o que se reflete naturalmente sobre eles próprios e termina por induzi-los a justificarem a adoção, em suas estratégias de combate à opressão, da opressão ela mesma ou dos comportamentos e ideias que a determinam no sistema opressivo que acreditam combater. Em face do anarquismo o marxismo pode ser definido como artifício do desespero, emulação por certo irrefletida e infernal, mas bem-intencionada, do quanto ambos mais desprezam.

Woodcock concentra-se mais na dimensão política, essa de que por vezes se presume ser possível falar sem o concurso ostensivo da dimensão econômica, hipótese que a exaustiva e obsessiva descrição feita por Marx da dinâmica do 'capital' descarta. Entretanto a compreensão da economia falha em prover o suficiente para a sociedade metamorfosear-se sem que uma terceira dimensão, a intelectiva, seja aplicada à identificação e à análise da raiz evidente de nosso purgatório social e assim construir o sentimento indissolvível de vexame e repúdio por permanecermos há tanto tempo nele. A certeza de ser a noção de dinheiro a responsável por todas as nossas misérias, longe de consensual, tem sido também inefetiva no provimento do necessário para nos envergonharmos da trágica distribuição da riqueza (que por definição é tudo quanto o trabalho é capaz de produzir). Apesar de em boa medida comprometidas com a História, grande parte das visões envolvendo o papel do dinheiro no nosso contrato social é insuficiente para suscitar algo além da falsa impressão de ser possível usá-lo - e mesmo de já ter sido usado - de algum modo indiscutivelmente justo.

Mas se não foi possível para Woodcock - por quaisquer razões - discutir em profundidade, em 'Anarquismo', esse aspecto estrutural do Estado sob que vivemos e temos vivido há milênios, é certo que em muitas de suas passagens o leitor achará vestígios do que o levará, se de fato interessado e persistente, a empreender por si próprio essa discussão. Afinal uma das virtudes desse livro seria a de mostrar que, se possui uma húbris, até nisso o anarquismo é pura e boa subversão: pois só por modéstia, tendo por oriente a moderação, poderá a capacidade intelectiva humana, paradoxalmente, vangloriar-se do que faz (ou fará) no mundo ao seu redor. Paradoxo antigo, de qualquer modo.

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