31 outubro 2015

O Estado é o mercado

Poucos argumentos são tão comuns na cena política nos derradeiros trinta ou quarenta anos quanto o da oposição de Estado e mercado, em que se formula o enfraquecimento ou aniquilamento do primeiro em nome da prevalência exclusiva do segundo. Seja este talvez o mais resistente dos temas pelos quais os desgastados conceitos 'direita' e 'esquerda' - mesmo que apenas de si e para si - ainda fazem algum sentido.

Por sua face comezinha divisa-se tão-só o anseio do empreendedor por usar dos recursos de que escolheu dispor, entre os quais - e talvez prioritariamente - a mão de obra, sem necessário ser prestar contas a qualquer instância de algum modo dita superior ou competente para tal lhe cobrar. Já do lado de que se poderia dizer 'teórico' - ou da argumentação mesma a justificar a pretensão - o defensor da primazia do mercado vale-se de expediente tido à primeira vista por, no mínimo, bombástico, uma vez atacar o que é o cerne ou o fim de todo filosofar, a questão dita Ética, com alegar ser o mercado a fonte donde exclusivamente fluiria o quanto teria a filosofia prenunciado e tão-só - ou quando muito - esboçado nesses seus dois mil e quinhentos anos de existência.

Para tanto tem usado de conceito suposto crucial, mas tratado sem a cabível e já clássica crítica, para demonstrar que o simples agir em comunidade e sem maior reflexão do que a orientada por não mais do que esse conceito, o de liberdade, é capaz de prover a humanidade disto que ela tem ensaiado produzir em ao menos dois milênios e meio de especulação filosófica. A ideia do livre agir, por sua vez assentada sobre a de individualismo (que mais não tem sido do que a assunção de um egoísmo de que se poderia dizer 'cru'), seria de per si o motor a impulsionar a sociedade a, não por certo, o seu funcionamento ideal (objetivo quimérico em cuja busca ter-se-iam perdido os filósofos, diriam os proponentes do Estado mínimo ou nulo), mas a condição suficientemente justa e que comportaria ao menos submissão articulada a despotismo, ambos esclarecidos.

Mal nutrida no pensamento clássico, do qual distancia-se com os excessos de disciplinas exegéticas impotentes para recriar tal e qual o foi o passado, além de vexada com ter tolerado em forma de lei - que por natureza é hábito (outrossim dito 'moral') calcificado(a) - práticas como o escravagismo e outras tantas em frontal desacato à condição humana (a cujos axiomas teve-se em consenso de anuir), a filosofia aparecida do ocaso do Renascimento e da Contrarreforma vê-se rendida à incapacidade de emendar na argumentação pelo mercado dito livre o quanto algum tino sobrante lhe acusa haver ali de incompatível com o bom senso. Por isso se lhe mostra bombástico o encaminhamento do argumento, pois parece fasciná-la, antes de sequer intrigá-la, a incontornável, óbvia submissão da liberdade à capacidade de escolher, já que não atina com ser justo isto, a escolha, o que a torna conivente com a ignorância (pois não há escolher quando existe certeza, isto é, quando se conhece), pelo que não se pode afirmar a liberdade como direito inato, mas como dever e, se de algum modo como direito, um adquirido, e somente quando se acredita ter-se logrado obtê-la sem estar-se em erro. A individualidade não lhe parece menos evidente, mas ao ser tratada como modernamente tendem a o ser os 'ismos' mostra-se tingida de inequívoco perigo: o indivíduo, afinal, só é definível como coisa em perene mutação, sendo preferível que por expansão e não, como como vem revelando a prática do mercado e mesmo a defende a teoria, por contração, à qual corresponderia a prevalência sempre crescente dos interesses do indivíduo, ainda que em detrimento do que interessa aos demais - disto deduzindo-se que o equilíbrio (e não a paz) da coisa pública seria produto do constante embate de interesses privados sem necessário ser estabelecer-se a priori ou descobrir-se conjunto de regras fundamentais para tal.

As regras num mercado dito 'livre', assim, apareceriam da estrita defesa da individualidade, a delimitada pelo tanto que o sujeito fosse capaz de incorporar a si e descrita como o que possui tendo por função satisfazer-lhe o que entende por necessário e cujo limite básico se estabeleceria na manutenção da própria existência. Não se descarte desse equacionamento o arbítrio do sujeito para estabelecer o quanto crê corresponder a tal limite e o quanto pode desconsiderar do limite alheio, caso assim entenda ser justo. Já no que concerne à expressão pública do 'justo', o contexto da chamada Justiça, não está ela imune às expressões privadas, as quais historicamente já tenderam a organizar-se em torno de uma única, dita a do chefe ou soberano numa dada comunidade, e de modo a preservá-la, estando nela subsumido abraçar a Justiça, a pública, a comum, mas configurando condições distintas de gozo decrescente do 'justo' relativamente a esse centro e tanto mais exíguas quanto mais distanciadas dele. O Estado moderno, por seu turno, procurou com mais rigor efetivar o caráter público da Justiça, entendido como a submissão de todos, sem exceção, ao justo, ora definido como espécie de média dos 'justos' privados e em que cada qual tem de ceder porção do seu para que se preserve no mínimo ou acima disto o limite geral, agora estabelecido em consenso. A teoria do Estado mínimo, em tese, é reação ao disposto pelo Estado moderno relativamente à Justiça e busca apresentar argumentos que justifiquem as discrepâncias do Estado antigo, entre os quais a discussão do preceito de igualdade (cujo debate atingiu o ápice na Revolução Francesa) articulado, naturalmente, ao 'justo'.

Em resumo os teóricos do Estado mínimo advogam a busca no 'mercado' do quanto o Estado moderno, dito 'de direito', passou a prover aos indivíduos, sem distinção, e que nada mais é do que acerto a que se chegou por intermédio de negociações mais ou menos vigorosas - e que é previsível tanto como certo ocorrerem no âmbito do 'mercado' assim como o entendem tais teóricos - com a particularidade de no âmbito do Estado as regras dessa negociação serem menos 'voláteis' do que prevê para o mercado, dito 'livre', a teoria deste e do Estado mínimo, cuja expressão mais radical preconiza o que chama de Anarco-capitalismo, definido como a pulverização ou eliminação completa da ideia de Estado - como se tal fosse possível ou sequer pensável.

Ora, o Estado sempre existirá, ainda que sem um percentual de seus indivíduos a geri-lo. O termo 'Estado' diz respeito à condição gregária ou a como está ou é um dado grupo de indivíduos. Ele diz respeito a como eles interagem, a como por ele é instanciado o que há de fundamental ou incontornável nos padrões de sua interação. Assim é que falar de 'mercado' é falar necessariamente de Estado. Mesmo num mundo como este em que tramitamos, em que o 'mercado', tornado mundial (algo que, em tese, sempre foi, variando apenas o âmbito do que se conhecia do chamado 'mundo'), perpassa os diversos Estados, a eliminação desses Estados não acarreta o apagamento da noção de Estado, mas sim ou tão-somente a criação de um Estado único, com a particularidade de ser explicitamente gerido por quem, em última análise, vem gerindo-o desde há muito segundo regras draconianas e a despeito do estatuído no Estado de direito, mas desta feita tendo por fundamento conjunto de conceitos manipulados segundo suas acepções mais ingênuas ou tão-só mal intencionadas, entre os  principais os de liberdade e individualidade, de maneira a instalar a competição generalizada, sem peias e passível de controle total por um dado grupo, repita-se, de perfil indistinguível do de quem tradicionalmente tem dominado os Estados como ainda os conhecemos' mas sem a legitimidade outorgada pela 'coisa pública'. A ideia de Estado mínimo, assim como a de Anarco-capitalismo, enfim, é eufemismo para a chamada 'lei da selva', ou para a capitulação do ser humano diante dos prolemas fundamentais da Ética.