10 dezembro 2016

Dois sentidos de 'coprofagia' na declaração de Francisco

O conhecimento do bem - ou o sentido para ele - é, ao que tudo indica, inato, como observou Epicteto há dois mil anos. O recém-nascido reagirá com clareza ao quanto lhe agrada ou desagrada, indicando já possuir o suficiente para de futuro desenvolver a compreensão de instâncias mais complexas de bem e mal. O sentimento de nojo parece ser uma manifestação suficientemente específica da mais genérica expressão de desagrado e segundo pesqusas desenvolver-se-á por volta do terceiro ano de vida. Parece também ser sentimento moldado pela cultura, uma vez haver pouca concordância entre indivíduos originários de distintos pontos do Planeta sobre o que lhes  inspira nojo, em meio a que é muito provável estarem as fezes.

Desse modo a comparação recentemente feita pelo Papa entre o consumo de notícias falsas e a coprofagia tem ao menos dois sentidos graves enquanto denúncia do modo de comportar-se de nossa sociedade. O primeiro diz respeito à infantilização: na primeiríssima infância tendemos todos a experimentar o sabor das próprias fezes, pelo menos, movidos pelo impulso de conhecer, que nesses tempos é fortemente guiado pelo paladar, além de pelo tato e pelo olfato, como tem informado a psicologia, e a compreensão de não se tratar de alimento virá depois de orientados para as rejeitarmos, manifesta no sentimento de nojo. Francisco descreve, assim, a intelecção inepta, infantil ou mal formada desses consumidores de mentiras jornalísticas, as quais têm por finalidade alijá-los de decisões cruciais concernindo seu próprio bem-estar na sociedade. Segundo ele a imprensa seria claramente coprofílica e em seu vício induziria o comportamento coprofágico da audiência, suposta inocente.

Entretanto fala-se aqui mormente em adultos que, embora não livres de infantilização intelectual, em grande número possuem boa escolaridade, além de acesso a outras fontes de informação que nestes tempos estão disponíveis na Internet em particular, por conseguinte tendo o suficiente em condições para formarem juízos diversos valendo-se do único método conhecido para esse fim, ou seja, o confronto de contrários ou contraditórios. Dizendo o mesmo em outros termos, é provável haver grande número de intelectos infantilizados entre os consumdores de factóides sensacionalistas da imprensa comprometida com políticas sociais regressivas, mas há também quantidade apreciável de indivíduos com plenas condições de constituirem juízos melhor fundamentados e que evdentemente as rejeitam. Trazendo para esse contexto a declaração de Francisco, há nela a distinção entre coprófilos, ou os forjadores de factóides, e coprófagos, o público destes. Dado haver dentre os consumidores esses com possibilidades de realizar o confronto de contrários e contraditórios com as notícias falsas, ora, eles estariam alinhados entre os que, como os jornalistas que as elaboram, extraem algum prazer do consumi-las, tratando-se portanto de coprófilos igualmente.

Mas a coprofila, ainda que desprezável por quem a não pratica, pode ser definida como sentimento autêntico por seu objeto. O coprófilo é suposto ter afeto, como indica sua designação, por isso que todas as culturas em tese rejeitam com mostras de nojo. Já quanto a 'coprófagia', é termo designando somente ingestão de fezes, a qual pode ocorrer de duas maneiras apenas: ou por inaptidão intelectual e, consequentemente, por não haver-se constituído o sentimento de nojo, como no caso da primeiríssima infância, ou por deliberação de subverter um consenso ainda que em prejuízo próprio do subversor, algo diretamente associável ao ato de terror suicida. A predileção específica por notícias falsas, de hábito caluniosas e bombásticas, não seria enfim fenômeno mensurável na quase totalidade dos praticantes da 'coprofagia' denunciada pelo Papa, nem na dos que diretamente associou à 'coprofilia', o que é com facilidade comprovável nas circunstãncias em que são eles os alvos da difamação: para um verdadeiro amante de dejetos não deverá haver problemas em que lhe atirem aquilo que autenticamente apreciam.

Este o segundo e mais grave sentido passível de extrair-se da declaração que, vindo de religioso com a reputação de Francisco, torna-se ainda mais séria, se tal é possível: teria implícita também a identificação, nessa forma de subversão social, de tintas de satanismo, que do ponto de vista cristão é a ritualização de todo o mal que tem por missão combater. Com grande sutileza - mas é possível também que involutariamente - Francisco faz coro com a seção não menos sensacionalista, entretanto, do folclore contemporâneo que acredita ver sinais de seja o advento, seja a presença real de Satã nos desdobramentos de fatos planetários nos recentes anos. No entanto, é mister observar, seguindo o seu já consagrado método de separar o alegórico, com frequência tido por factual, do genuinamente ético na doutrina de Cristo, não seria em absoluto justo supor que use da posição de Pontífice para fazer sensasionalismo: ao contrário, esse aspecto gravíssimo do que declarou  insere-se na metodologia mencionada na medida em que oferece fato - por conseguinte, palpável, cientificamente testável, por assim dizer - para demonstrar que o mal é apenas  ponto de vista, opinião, embora de hábito bem fundamentada pelas vítimas de atos de quem ignora que sua busca pelo que acredita ser bom só resulta em catástrofes, pelas quais será vitimado também.

De modo geral precisamos compreender melhor as meias verdades de ditados como 'o inferno está cheio de boas ou das melhores intenções' porque de intenções iguais o céu estará igualmente repleto e o que diferencia um do outro é, de um lado, aquilo em que resultaram tais intenções, o bem ou o mal, e de outro, o que determinou seus resultados, ou seja, uma maior ou menor ignorãncia do sujeito quanto ao que fez. O inferno, pois, seria o lugar dos mais ignorantes, condenação á primeira vista inequivocamente injusta. Observe-se, entretanto, que a condição perene de ignorãncia é um dos pouquíssimos conhecimentos certos, de comprovada validade, que possuímos, o que acarreta ou conformarmo-nos e, assim, até nos comprazermos nela, ou nos empenharmos em seguir dissipando-a o quanto nos for possível, parecendo não haver dúvida de ser esta última escolha a mais correta. Que se refine então, em vista disto, a afirmação quanto ao inferno ser o porto final dos mais ignorantes - o que em tese o céu poderia ser também - acrescentando-se que o maior pecado dos assim condenados seria justo a tolerância e mesmo o comprazimento de sua condição de ignorantes: precisamente o que parte considerável dos coprófagos das falsas notícias é suposto ser, CQMF (ou Como Quis Mostar Francisto).

19 novembro 2016

Argumentar não é para qualquer um.

Isto não é o mesmo que dizer que há humanos normais, plenamente funcionais e, no entanto, incapazes de argumentar. Que fique claro que semelhante aberração inexiste. Desde que em condições regulares o aparelho biológico humano favorece o bom senso.

Mas é como qualquer outra habilidade inata essa da argumentação. Devido à constituição somos todos capazes de chutar, por exemplo, entretanto só os mais aplicados no exercício do chute conseguem fazer adequado uso de uma bola no futebol ou acertar com precisão cirúrgica o pé onde é mais doloroso para um oponente.

Somos todos propensos ao bom senso. Mesmo meus cachorros e gatos o eram, guardadas as devidas diferenças entre as suas e nossa constituição. Mas há limites no usá-lo, superados somente a duras penas - na verdade nem tão duras assim quando há no praticante boa vontade.

Sem essa predisposição não há debate ou, quando muito, há bate-boca. E sem o bom debate é o próprio bom senso que se vê prejuticado porque, como teria observado o sofista Protágoras há dois mil e quinhentos anos, a razão é uma construção coletiva e não ou não tanto aquele edifício perfeitamente acabado que nós, qual cegos, vamos tateando para fazer idéia do que e de como é.

É Iván Izquierdo, neurocientista brasileiro de origem argentina, quem mostra o caminho das pedras para a compreensão do motivo de a razão ser e ter de ser obra de todas as mãos possíveis e de boa vontade - e às vezes mesmo das de má vontade, já que a propensão para pensar não é com facilidade refreável e termina por gerar eventualmente bons palpites, mesmo à revelia dos palpiteiros. Izquerdo, assim, observa que em tudo já produzido pela neurociência jamais se encontrou vestígio de separação entre o que se chama de razão e de emoção, isto é, no quanto se julga ser racional na atividade da mente há 'contaminação' de sentimentos e emoções e vice-versa.

Enfim, é fácil ver, como já viam pensadores como Epicteto e Epicuro, que a razão é tecido feito com o fio de tudo quanto se sentiu, é modo de organizar a sensibilidade (aí incluída a emoção) que pode começar, por exemplo, ensinando-nos que nem sempre obtemos o mel enfiando intempestivamente a mão nua na colméia. E como de um para outro de nós varia a sensibilidade, ainda que dentro de certos limites, nada mais natural que busquemos fazer dessas diferenças o tecido consensual que chamamos de razão e que, insisto, só é viável porque a despeito das discrepâncias guardamos muito - e como! - de traços em comum.

Além disso imagine-se que à medida em que cresce em complexidade esse outro tecido, o das relações sociais, aumenta - e, eu diria, exponencialmente - o quanto vem ajuntar-se ao tecido compartilhado de sensibilidades, fazendo dessa tecedura verdadeiro projeto de vida. É evidente, nem todos parecem dispostos a dedicar sua existência à tecelagem do bom senso, abrindo mão de, por exemplo, rega-bofes, bate-coxas e, mais importante ainda, de sobreviver nesta selva criada pelo humano para escapar da outra, que o mundo lhe deu.

Hoje a especialidade mais comum, mais difundida entre nós é a da sobrevivência a nós próprios, as demais áreas da vida sendo delegadas aos que crêem ter mais afinidades com elas ou se julgam remunerados bem o bastante para tratar com exclusividade do que não é exclusivamente seu. Da faina desses outros especialistas os especializados em sobreviver ficamos com somente o que concedem eles em divulgar ou, mais provavelmente, com o que desse tanto fazemos sentido.

Para lá de certo grau de complexidade, então, erguemos o braço e estalamos os dedos até que nos atenda algum desses delegados, o que pode tornar um debate em espera maçante ou, pior, frustrante, porque nada garante que esse sujeito saiba como resolver a questão. Portanto se você acha que a solução de nosso entrevero sócio-político passa pela argumentação, como de fato, inequivocamente passa, prepare um bom farnel com paciência acima de qualquer outro artigo necessário, embora sem deixar para trás o bom preparo físico e mesmo um razoável colete à prova de balas: pelo caminho é bem provável topar com tipos para quem a solução de toda pendenga só se dá à base de tiro ou cacete.

26 outubro 2016

Inspirado num destempero de Ministra

Parece que não, mas há algo de desumano em tratar pessoas a partir de um título: Doutor Fulano, Maestro Sicrano, Juiz Beltrano e assim vai. Sempre me incomodou ser abordado desse modo porque nele se embute uma fieira de cobranças ou expectativas que é humanamente impossível honrar. Uma ideia do que refiro pode ser tida imaginando-se, por exemplo, o custo, para alguém minimamente responsável, de ser chamado de Doutor quando diante do leito dum desenganado.

É verdade que se acerta muito - que acertamos muito - e que mundo afora há número impressionante de compromissos honrados, o suficiente para calar, por estupefação, qualquer pessimista. Mas honestamente e de si para si (que se dispense a confissão pública) nenhum acertador ou honrador de compromissos em sã consciência negará o papel do acaso - da sorte - em seus feitos, ainda que imodestamente o admita modesto. Seria uma temeridade fazer o contrário porque, talvez aborrecida ou magoada, quem sabe a sorte lhe falte na vez seguinte, e aí o sujeito continuará contando com apenas a arrogada competência própria para explicar o malogro: verdadeiramente o que se chama de 'saia justa'.

É certo que títulos correspondem a afazeres ou funções projetados por humanos, mas é certo igualmente que humanos somos incorrigivelmente pretensiosos e quase que como por divertimento vivemos de maquinar maneiras de nos superar, de nos transcendermos - como enchemos o peito para dizer. Com se fosse fácil conseguir mera e simplesmente ser gente!

É possível que, por conta do esforço de tornar-se mais que humano, em alguns sujeitos os títulos lhes tenham colado às caras (como advertiu Pessoa), abrindo assim as comportas para inundar a já custosa faina de ser somente gente daquilo que se pode chamar de efemeridades eminentes, sorte de zoológico de absurdidades que se algo em comum têm é essa demente presunção de haverem deixado para trás a condição humana. E, aqui entre nós, nada mais natural que se trate de monstruosidades, e em tudo distintas entre si, exceto em serem monstruosamente presunçosas, porque a verdade é que ninguém faz qualquer idéia do que venha após o humano, em particular enquanto este não cumpre as tarefas mais comezinhas da condição de humanidade.

Assim de cabeça me ocorre exemplo histórico, o de sujeito que, além de rei, concedeu em ser chamado de Sol e, num espasmo de seu desvario, atreveu-se a equiparar-se ao próprio Estado: como se os demais indivíduos inexistissem, como se Estado não fosse exclusivamente a reunião destes sobre um naco de terra, como se o termo não designasse como esses sujeitos estão, como atuam entre si - e no que infelizmente se tem incluído até tolerarem, sem que se precise até que ponto, bravatas desse calibre. Mas apesar de em sucessivas revoluções vir o povo mostrando, nos derradeiros duzentos e tantos anos, o que ou quem é com efeito o Estado, exemplos de desrespeitos desse gênero têm-se multiplicado: ainda hoje baixamos a cabeça para a ignominiosa sinonímia de Governo e Estado, sem nos darmos conta de que em aceitando-a nos fazemos qual reses que para lá de curral e pasto têm por destino alternativo apenas o matadouro.

Que a insistência na crueza da metáfora me seja de algum modo perdoada, mas é necessária a contundência próxima do ferir para acordar sentidos tão entorpecidos quanto os nossos estão: é provável que por conta de não levantarmos a cabeça do cocho tenhamos concedido em que os de máscaras coladas à cara ditem, façam praticamente tudo em nosso nome - e não por nós: quem sabe de lei é exclusivamente o legislador, de justiça, o juiz, de lucros, o patrão, de economia, o economista, de saúde, o médico, de música, o músico, de filosofia, o filósofo... Ora, e o que esperar de titulados, todos incumbidos das respectivas obrigações supra-humanas, senão que pensem e ajam segundo essas suas apostas condições, em que estão seguros de terem deixado no passado a condição de reses? Nosso marasmo vem do que dizemos sem antes o termos pensado, vem do que outros, em suas delirantes e abjetas condições, têm-nos posto para dizer. A crise nossa é da ideia, que virou miragem e da qual nem mesmo nos atrevemos a nos aproximar para constatar se lhe falta consistência.

E que não me chamem - sequer por ironia - de mestre ou doutor pelo que escrevo: teria tristes conotações. Em fim de contas, como é visível, eu apenas acabo de acordar.

Induzindo um sonho

Essa mania minha de ir muito direto a certos pontos tem lá seus reveses. Ela parte da convicção de que refiro quem certamente sabe mais do que sei, no que estou seguro de estar certo. O problema aí advém de uma bobagem, um esquecimento meu: o de que em geral se está pensando o mesmo de mim (evidente erro!) e no fim me vejo atribuido de intenção que não tive.

Nos últimos tempos meu foco tem estado sobre a lógica do dinheiro, sobre aquilo que se tem mostrado inevitável no seu uso. Em vista das polêmicas rodando o País - e o mundo - ultimamente, não vejo como ser menos direto quanto a isso, em especial por estarmos todos numa perpétua campanha por reformas diversas e à qual não me sinto menos compelido a aderir. Como qualquer outro de nós, procuro fazer essa adesão de maneira crítica, o que não passa do previsível: apontar obscuridades e trazer para elas a luz que cada um pode, pois apesar da alguma balbúrdia que se forma nesses lugares, a esperança é ainda a de que muitas mãos possam complementar-se na realização do trabalho, que examiná-los com múltiplos olhos pode esclarecer mais do que com apenas um.

Assim é que tenho procurado mostrar como no meu entender o tema, que é limitado pelas leituras que faço e vivências que tenho, certas sugestões de mudanças parecem resultar ineficazes, porque, como pus acima, no caso do dinheiro há efeitos do seu uso que são inevitáveis, por mais que se acredite ser possível 'domesticá-lo": coisas de sua natureza, ou seja, sem as quais ele deixa de ser o que é, dimheiro. Minha posição não tem como ser mais clara: voto por sua sumária extinção, mas - é evidente - não deliro achando que isto se consiga, nas condições atuais, da noite para o dia.

Não tenho dúvida de que o mundo sem ele seria indescritivelmente melhor, mas entendo também que nos derradeiros séculos ou milênios não nos temos feito com a necessária fibra para tolerar sua ausência. Viver sem moeda é coisa para uma natureza fortificada física e ainda mais eticamente. Mas assim como nos fizemos no que somos, não duvido de sermos capazes de nos fazermos de outros modos, inclusive num que nos habilite a viver num mundo de exclusivo compartilhamento, em que as idéias de troca e concorrência não passem de memória de um longo e mal sucedido experimento social.

E isto só se consegue em se pensando no assunto, principalmente nas atuais circunstâncias, em que número crescente de pessoas vem identificando esses pontos nocivos, sem entretanto lhes dar os nomes apropriados, quase sempre mostrando-se receosas quanto a admitir que aquilo que lhes é fonte de certos prazeres o seja também de seus maiores desapontamentos. Uma reação comum à introdução da proposta de extinguir o dinheiro nesse contexto de íntimo conflito de interesses é classificá-la como pura fantasia, idealismo, ou seja o que for no gênero: como se não fossemos todos afeitos a fantasiar, idealizar, embora às vezes em assuntos sem maior importância ou consequência! Assim, por que não incluir este na lista pessoal de sonhos em vigília e, para os recatados, dividir com os mais íntimos sua interpretação?

Sequer é preciso estipular um regime diário para o sonhar, haja vista o sem número de ocasiões em que de hora em hora se é acossado por algum aspecto, mesmo sutil, do desconforto, da deselegância e até da destrutividade da existência do dinheiro. Nessas ocasiões é sempre oportuno - por instrutivo - indagar-se sobre a possibilidade de corrigir ou eliminar aquele seu descômodo sem para sempre abrir mão de tê-lo no bolso. Com a devida persistência no método - apoiada, se necessário, em alguma literatura pertinente - em pouco tempo iremos habituando-nos à recorrente, inevitável resposta para essa questão: não!

20 maio 2016

Entender o Brasil agora

O golpe contra a brasilidade vai muito além da usurpação do eterno interino. Ele produziu inimigos de morte habitando os mesmos lares, na porta ao lado, no desconhecido que cumprimentávamos por cortesia. Transformou idiotas em armas letais, fez legião de ingratos de miseráveis históricos depois de comerem, vestirem e estudarem pela primeira vez em séculos e tirou da vergonha em que se ocultavam ou dissimulavam as verdadeiras forças do mal herdeiras de escravismo e ditadura. O Brasil não poderia parecer mais insolúvel e no entanto tão à beira de uma solução - a final?

***

Mais do que a cara da direita, que circulava pelas sombras da vergonha coberta de ódio e pulsava como um feto pútrido no interior dos idiotas, a humilhação do golpe mostra ao brasileiro a nudez de corpo inteiro de sua esquerda. Em nada diversa das demais nudezas de quaisquee nacionalidades, falha em esconder que nunca esteve vestida senão dos destroços e farrapos que deixam sobre nós os fracassos do capital em fazer do mundo lugar digno do próprio nome.
Se chega ao poder, não é por lhe ter o povo apreço especial, mas  por oportunismo geral, à guisa de equipe de resgate em catástrofe consumada, arriscando-se por isso à execração sumária, caso não recobre as vidas todas, ou à santidade perigosa dos mitos, e assim tender a se fazer presa da própria imagem ao espelho. Entretanto é mais comum circunstãncia mais singela, em que se submete à pecha de serviçal de faxina nas ressacas seguindo as esbórnias do dinheiro.

Feito o serviço, se acaso deixando a desejar, é caçada e abatida, decerto merecidamente, e se a contento, é de quqalquer modo escorraçada, passando então a vagar nua e louca pelos becos, choramingando e rogando pragas, ignorada por quem se apruma, garçom ou conviva, a caminho do festim novo no endereço que faz pouco acabou de limpar. Passará a noite entre resmungos inúteis e gestos obscenos à volta da balbúrdia, até que na madrugada o tempo a console e a faça sentar nos degraus do portão enquanto não vem o sol, para só então usar a entrada dos fundos e nas pontas dos pés beliscar as sobras em torno dos corpos cheirando a embriaguez e aproveitar-se dos roncos para arrastar cuidadosamente os móveis e esfregar os cantos.

14 maio 2016

'Eles'

Não é à toa que 'eles' dizem o que querem, doa em quem doer (desde que não neles próprios, é claro). Desenhando: a lei, por princípio, é o dispositivo estabelecedor do crime, ou seja, nela se diz o que é e o que não é crime. Tão fundamental é esse princípio legal, que está estampado na Constituição: não existe crime que não seja prescrito em lei - reza, mais ou menos assim, o texto magno. 'Eles', assim tão mal na foto, são o Legislativo: os que escrevem a lei, portanto. Por lei, não estão nem podem estar acima de lei nenhuma, o que não tem a menor importância, pois na realidade estão antes de todas.

Em causa própria ou em nenhuma outra causa

A maior contribuição do Brasil para a ciência política ainda estará por reconhecer-se, mas só depois de esta jogar por terra o prurido de admitir seu axioma fundamental. É aqui no País que se tem demonstrado para além de qualquer dúvida que todo indivíduo, de necessidade político, só atua - só pode atuar - em causa própria.

Nada mais natural que assim seja, pois ameaçada ou perdida esta causa, que em importância é primeira, todas as demais que defenderia deixarão de ter vez. A arte do embate político, portanto, resume-se em pôr permanentemente em xeque a causa própria de todo opositor, desse modo trancando a possibilidade de que cogite invocar outras, as causas comuns, compartilhadas, fragilizando-lhe a capacidade ele fazê-las prosperar.

É incomum a causa própria do indivíduo ser a mesma de um outro e mais incomum ainda que seja a de grupo de indivíduos; entretanto toda e qualquer causa própria tem por eixo ou fundamento a sobrevivência, ou seja, a busca do indivíduo por manter-se vivo, que pode ser dita a 'causa própria universal'.

Das causas comuns - ou causas partilhadas - pode dizer-se  serem constructos abraçados por mais de um indivíduo por abrigarem ao menos uma causa abraçada por cada um deles e, no mínimo, a 'causa própria universal', podendo estas duas ser, inclusive, uma e a mesma.

Como é evidente, a 'causa própria universal' não possui por si 'corpo', senão excepcionalmente. É inteiramente geral, 'substancializando-se' em outras causas próprias, que lhe conferem a possibilidade de ter algum efeito. Quando 'substancializada em si mesma', excepcionalmente, a 'causa própria universal' se constitui na manutenção imediata dos sistemas vitais do indivíduo, o que habitualmente a condição gregária tende a prover para a grande parte ou para a totalidade dos elementos na grei. A 'causa própria universal' é a essência ou o eixo das causas próprias palpáveis, ainda que entre si conflitantes, e todas as causas, mesmo as coletivas, têm por raiz - ou eixo, ou  essência - a 'causa própria universal'.

Num sistema de gestão da 'coisa pública' admitindo a representatividade a posição de representante de subgrupo da sociedade determina uma causa própria peculiar, que é a de o indivíduo conservar-se na condição de representante, isto é, a de manter-se na assembléia de representantes. Do jogo político de que consta a representatividade, portanto, é parte inalienável algum empenho de cada representante, visando a prevalência da causa comum que foi instado a defender na assembléia, em ameaçar a estabilidade da condição representativa do outro.

Embora inseparável do jogo político representativo, o empenho dos representantes em reciprocamente por em xeque suas estabilidades enquanto representantes é fator cujo abuso e descontrole generalizados é comum determinarem seja o caos do sistema, seja sua estagnação. Para que a administração pública avance é preciso que o embate ocorra no plano das causas comums defendidas por cada representante, servindo o embate no nível das causas próprias como instrumento circunstancial de pressão em apoio às disputas no outro nível.

O embate das causas comuns ou coletivas defendidas por cada representante é suposto se dar pela avaliação de qual ou quais delas oferecem as maiores vantagens e os menores danos para a comunidade como um todo, decorrendo, pois, no âmbito da argumentação técnica, onde com exclusividade é esperado resolver-se. O uso do embate  no nível da causa própria de cada representante, portanto, deveria ser desnecessário, sendo sinal de algum tipo de fragilidade do tecido político quando presente, tendendo a disseminar-se e a prevalecer, caso providências não sejam tomadas para estancá-lo ou para, no mínimo, mantê-lo em patamares toleráveis. Perdido esse controle mínimo sobre ele, tende a tornar-se a face visível das assembléias de representantes, postergando ou eliminando por completo o debate sobre as causas comuns.

O único fator com capacidade suficiente para contornar assmbleias de representantes em caos ou estagnadas é a opinião pública forte ou organizada, que pode agir tanto diretamente, pela massa de cidadãos, quanto indiretamente, quando apóia em massa um representante e assim o capacita a resover o óbice, recolocando em pauta a discussão das causas coletivas. É entretanto possível que o embate de causas próprias dos representantes contamine as massas, impedindo-as de tomar as rédeas da situação, impedindo-as de organizar-se, desse modo pavimentando o caminho para a desordem geral, o embate disseminado, a guerra civil. Circunstâncias como essa tendem a permanecer indefinidamente ou até que as perdas determinem seja a eliminação ou o suficiente enfraquecimento de uma ou mais das facções envolvidas, seja a trégua e a negociação, que não passa do estabelecimento ou restabelecimento das causas comuns.

Diante desta exposição é possível talvez mensurar a estabilidade de uma nação e os riscos a que está sujeita avaliando-se o comportamento dos representantes quanto ao uso ou abuso do embate de causas próprias enquanto dispositivo de pressão para a viabilização das causas coletivas que debatem. A maior visibilidade do debate sobre causas coletivas, então, é sinal de o sistema conservar-se estável e quanto mais visível é o embate de causas próprias, maiores a instabilidade e o risco de contaminação da esfera dos cidadãos. Há também a circunstância de entre os representantes prevalecer o embate de causas próprias e este não ter a visibilidade que lhe caberia, sinalilzando a possibilidade de o embate em torno às causas comuns estar sendo utilizado como cortina de fumaça para o outro, o que seria detectável pelos recorrentes impasses ou alguma estagnação do país determinada pela escassa coerência dos projetos aprovados, ocorrendo mais perdas do que ganhos para a população em geral.

Assim que em termos ideais é imprescindível que a causa própria de um representante e a causa comum, por ele representada, se impossível coincidirem, sejam quase a mesma ou tenha esta última a anterior por eixo, de modo a garantir que a consecução de uma se articule na consecução da outra inevitavelmente. Fora dessa perspectiva a atividade política representativa não procede, estanca. Isto porque o princípio por trás desse panorama estabelece que só se vive em causa própria ou em causa nenhuma.

Punição preventiva e perfil da Justiça: entrelace de meditações

Sendo embora tema caro à ficção, a precognição de crimes não é 'instituto' - diria o rábula - com que se possa ou mesmo se deva contar no mundo real. Representa o anseio hiperbólico de livrar de delitos o mundo atacando-os in utero, quando ainda são possibilidade. O instrumento mais próximo que se possui disto é a lei, que em si e de fato não prevê nada além do que em seus termos é delineado das ilicitudes, não sendo necessário que venham ocorrer tão-só por estarem ali descritas. Não bastasse consistir na resposta a atos considerados de algum modo e em algum grau incômodos ou inoportunos, tais atos têm de necessidade, portanto, já ter ocorrido (pois não parece justo ou são legislar sobre atos hipotéticos, exclusivamente potenciais, jamais observados), o alcance futuro da lei pode ser, quando muito, obtido na forma de preventivo. Previne por prescrição do que se pode ou não se pode - ou do que é devido ou indevido - fazer e por cominação, porque - esclarece o rábula - prescrição alguma faz sentido sem a contrapartida que induza a acatá-la: parece não bastar ao humano lhe apontarem o caminho do bom sem, ato contínuo, espicaçá-lo para que o tome.

Fora desse âmbito parece não apenas injusto, mas insano, falar-se em prevenir crimes dum ponto de vista judicial. É certo, entretanto, que o posicionamento de polícia onde é habitual ocorrerem malfeitos pode sugerir cautela excedendo essa indicação, mas é bastante compreendê-lo como representação viva da prevenção na lei, simbolizando a um só tempo e potencialmente prescrição e cominação, isto é, desde que conserve a condição pontencial até ser explícita e inequivocamente instada a atuar, é claro, coibindo e, em justa medida, punindo o ilícito efetivamente cometido. Em outros termos: não é facultado ao agente da lei adivinhar ocorrência de crime. Fosse o contrário e não sendo ele, por exemplo, vidente, a sociedade tenderia a constituir-se em gigantesco sistema prisional e as leis em indutoras de insanidade mental em seus agentes.

Punir preventivamente, portanto e se pouco, é monstruosidade - 'teratologia', atalha o rábula. Punição é jargão jurídico para vingança e que eufemisticamente se acredita denotar reabilitação eventual para o condenado de crime e lenitivo para o lesado por ele. Em si mesma ou enquanto fato não é garante de uma coisa ou de outra, demonstrando que a justiça só se projeta no futuro, exclusivamente em potência, por intermédio da lei e de seus agentes, e perante quem os cidadãos se permitem coibir-se de produzir malfeito à hipótese de serem punidos. Os demais, insensíveis à cominação legal, acreditam ser seus atos eles próprios expressão da justiça, supostamente contemplando o que a lei, por motivos nem sempre nobres ou justos, teria escolhido omitir.

***

A Justiça, ela mesma, não é cega. Não se pode anuir a que o seja sem incorrer em equívoco sério. É dedutível que possua o sentido da visão porque do contrário seria despropositado vendar-se, salvo se por motivos estéticos ou de autoestma. Permite, então, que a vendem e só para a presumirem isenta, imparcial, não exclusivamente quanto a quem, mas também quanto a o quê. Seu sentido privilegiado é o ouvir, não por ser cega, insista-se, mas por não ter visto o que irá julgar, porque atua depois de ocorrência extraordinária. Sua matéria, pois, é o que outros viram e então lhe narram: por isso ouve e exaustivamente, a saber, versões até opostas, contraditórias do fato, à medida que as depositam na balança que traz na mão. Sua matéria é o verbo puro, do qual retirará a verdade possível em meio ao que em primeira abordagem pode saber a paradoxo. E a retirará pela extrema sensibilidade do tato dizendo-lhe o peso relativo dos pratos pendentes.

Em sendo indicativo de que julgará pelo que ouve por não ter visto, a venda o é também de que foi chamada, instada a dirimir dúvida, impasse, e de que só o faz quando convidada. Agir de outro modo seria trocar-se por estranha, a tirania, ou por figura que tomam por si, embora possua asas, a vingança - Nêmesis. Para a Justiça o mundo, como o indica seu homógrafo adjetivo, é puro e tende a resolver-se sem necessário ser que interceda senão quando convidada. E até que inicie e mesmo até concluir seus trabalhos tem de conservar-se assim, na presunção de que trata com o puro até que se demonstre, se prove, o contrário. Agir de outro modo seria passar-se por vate, arriscar-se em profecias, e esse é definitivamente um papel que a Justiça reluta em desempenhar, o de antever seja o que for - considerando que já não viu o que foi - e eis, daí, mais uma razão para ter-se feito vendar: não pode, não deve arriscar o olhar adiante.

Faz tempo vem-se recusando a Justiça a entrar em cena portanto mais do que a balança. Concedeu em empunhar espada por tempo demais, em claro desalinho com sua real natureza, demonstração esta de ter sido em extremo gentil com cessão assim duradoura. Espada foi sempre instrumento de Nêmesis, jamais tendo encontrado a Justiça ocasião de usá-la, pois punir é instância extrema da lei e antes tendo em vista prevenir o que ali se prevê, isto é, a incidência ou reincidência em falta: e fora justo ou razoável castigar, que sentido teria ungir o humano com os dilemas do livre-arbítrio se fosse ele previsível como a queda livre dos corpos? Por isso ela não faz leis, por serem intrinsecamente preventivas e deverem para tal prever punições, cominá-las - corrige o rábula. Por conseguinte, também não pune, já que punir tem parte com prevenir, que pressupõe prever, antecipar o imprevisível. Ela julga apenas e apenas segundo critérios que lhe fornecem os próprios homens, que são as leis. Quem pune são os homens, orientados ou auxiliados pela vingança, cuja espada é sinal dos seus ardis, e as asas, da pressa e da presunção indutiva (como a de conceber o futuro).

Enquanto espírito que possui o humano antes de permitir que o encarne Nêmesis, a Justiça tem, sim, alguma participação na cunhagem das leis, oferecendo sua balança à guisa de norte ou farol, mas não por isso permite-se interpretá-las quando em ato de julgar: seria interferir, rasurar, reescrever o que é de responsabilidade exclusiva do homem, fugindo inteiramente ao seu perfil arriscar em jogos dessa natureza o próprio equilíbrio. Quando muito colige, em meio à prolixa, desatinada e deseseperançada busca humana por equidade que constitui as legislações, o que concerne ao pleiteado e se julga é quanto a se terem esgotado os recursos das partes, quando o debate chega ao termo da lei. Ir além disto, repita-se, é ombrear-se com os homens, tomar para si o que é tarefa deles, arriscar-se a que a tomem por vingança, mas se algo se atreveria a ordenar, isto seria o retorno do mundo ao que é enquanto adjetivo - puro, em equilíbrio, numa palavra, justo.

Nem isto, entretanto, cabe à Justiça - ou permite-se ela - pronunciar, cabendo-lhe talvez mostrar, como por eras vem fazendo, ao homem o que em verdade é, como num desnudar-se, a começar com a rejeição da espada, lento e parcimonioso para com o entendimento delicadamente instável dos que o presenciam. Com o tempo quiçá entendam que o fim dela, Justiça, é diluir-se em pura reintegração do que fugiu à regra, é o exercício sem esforço do perdão genuinamente pedido e concedido, o que não parece ainda ser destino visível. Porque perdão é o que por intuição se ofereceria ao agravo involuntário, que sequer confina com o descuido, enquanto o castigo se aplica, também intuitivamente, à falta que se entendeu propositada. E se propósito houve - toma a palavra o rábula, como a pavonear-se justo - é porque houve motivo, pelo que é estreito o caminho de perdoar quando o amesqunham avenidas em que trafegam nos dois sentidos crime e seus ensejos e onde, desnorteadas, procuram inutilmente estabelecer alguma ordem as punições.

10 abril 2016

Por que em claro vivamos sempre, noites e dias!

"... um governo que finge ser de esquerda mas..." - diz um estudante francês no abril de noites em claro. Já ouvimos e continuamos, deste lado do Atlântico, a ouvir essa frase.

Mas seria sensato negar a todos os governos o benefício de duvidarmos de que prometem mentiras para se elegerem? Creio que não - não a todos!

A mecânica ainda incompreendida ou não aceita da democracia constitui fluxo, como o sanguíneo, que em condições normais não tem como não passar pelo coração se o indivíduo vive. No organismo democrático é a população o coração e o sangue. Não é possível pensar a democracia como aparelho funcionando sob controle remoto enquanto dividimos a atenção com outras coisas: não que se trate de vigia perpétua da coisa pública, pois não há o que vigiar quando efetivamente se faz essa coisa em conjunto, quando o foco é o bem de todos, sem exceção, o bem que não é ponto fixo a ser buscado mas acomodação permanente do abuso à tolerância - e não o contrário.

É tola a assunção de que a ênfase no comum minimiza ou elimina o individual, o privado. É tola por não fazer sentido, pois não há coletividade senão a de indivíduos plenos, assim como individualidades exacerbadas ou amputadas formam, quando muito, coleções, conjuntos na acepção matemática do termo. Em comunidades verdadeiras privado e comum se reforçam, cooperam, dialogam, jamais se opõem um ao outro. E o único critério exigido para que isto se dê é a atenção focada no comum, pois não há o comum senão o pertencente a todos.

O quid de nossos problemas reside em mentalidade tirada de delírio e transformada em pesadelo, a da individualidade superabundante, cuja presença só se consolida se rodeada de individualidades amputadas - e permanentemente insatisfeitas. Nem a perspectiva - ou promessa - de que, embora limitados, os espaços para individualidades exuberantes podem ser ocupados por todos ou quaisquer uns em turnos torna tolerável o agrupamento humano nesse molde - do que estamos advertidos desde há séculos. E se temos teimado em manter-nos nele, admitamos, é ou porque não conseguimos abrir mão do que temos por privilégios ou porque aguardamos com impaciência a oportunidade de os usurparmos.

Num contexto assim, se algo de comum existe, é o sentimento de mútua exclusão de todos os projetos pessoais por intumescimento próprio, alguns associando-se provisoriamente em vista de aumentarem seu poder e escolhendo quem o represente e exerça frente aos outros, enfim, a democracia como nesses termos somos capazes de compreender, de conceber, a democracia em que o projeto comum - de País - é estratégia de guerra: não é à toa que corremos a abraçar a proposta hegeliana de lógica em que o paradoxo é tolerado enquanto solução.

E num contexto assim não se espere que se cumpram facilmente as promessas, por sinceras que sejam, de aspirantes a representantes de grupos, por maiores que estes sejam. Haverão de encontrar, representantes quaisquer, à volta do posto para que os escolheram aquelas individualidades exuberantes que desde sempre manejam e controlam as próprias exuberâncias em detrimento das demais.

A única coisa a refrear essas individualidades infladas é a certeza de que os representantes contra quem se batem contam com base sólida, quando não crescente, de apoiadores. Tal apoio, como se vê, não pode ser intermitente: a democracia que conhecemos não tem piloto automático.

O excelente dessa conjuntura é ser ela exercício permanente da noção possível de 'coisa comum' (a possível numa democracia como esta que somos capazes de entender), capacitando-nos à execução plena, quando a concebermos, da 'coisa verdadeiramente comum'. Sem um significado sólido, ativo e amplamente aceito toda representação - e com isto se entenda 'todo signo' - é inconsistente e se dissipa.

13 março 2016

Presunção a posteriori de inocência

Faz pouco escrevi sobre não existir quem em sã consciência se poria a julgar - sem falar em condenar - alguém presumido inocente.

Presunção é hipótese, ou algo 'menor que', ou que 'está sob', ou 'é subordinado a' uma tese - e esta seria uma certeza. Assim que uma coisa é presumir inocência, outra é presumir culpa, e ninguém é levado a tribunal - até onde sei do tema ou o compreendo - se por hipótese nada se tem contra si. É preciso, sim, que se presuma ao menos uma culpa para que se instaure um processo, mas é preciso que se enfatize, particularmente para o brasileiro em geral, que até aí a culpa é também hipótese, ainda que tratada como tese e bem fundamemtada pela promotoria.

E durante o julgamento, até que se prove o contrário, é exigido que se considere também a hipótese de o fulano ser inocente, sustentada pela defesa. A presunção de inocência é, em fim de contas, uma variante do princípio chamado 'benefício da dúvida' e não passa de ritualização em Ética da consciência da falibilidade humana, sendo o evidente fundamento da hoje famosa 'ampla defesa'.

É, então, dispositivo a posteriori no contexto dos procedimentos da Justiça, para os quais já se presumiu a priori alguma culpa. Tomada ela, presunção de inocência, a priori, ninguém em sã consciência, como se disse alhures, vai estabelecer processo judicial algum.

Apesar das evidentes vantagens de garanti-la nos meandros do Direito, o fato de vir como 'contrapeso' da presunção de culpa não livra das sequelas de ter sido objeto desta última um réu inocentado, pelo que, na prática, quando a posteriori, a presunção de inocência termina por ter efeito quase exclusivamente retórico, em especial em sociedades como a nossa, brasileira, em que o descompasso dos seus segmentos suscita percepções distintas do que é direito e assim necessidades conflitantes do fazer justiça. Num contexto como o nosso nem sempre as provas que inocentam são em particular assimiladas com naturalidade, o contrário das que inculpam.

Temos muito a caminhar, enquanto povo, na direção de nos tornarmos, um dia, gente como nossas imaginações talvez não tenham ainda sido capazes de conceber. Que não se perca o passo por isso.

11 março 2016

A justiça à brasileira,

essa que mais do que a labuta de rábulas, legisladores e magistrados rumina o coração do brasileiro e dali extrai seu vigor tremendo, conserva aquele traço ibérico - talvez - antigo que fez a fama e as delícias da Santa Inquisição - para que havia culpa em somente ser-se suspeito, prova cabal de que não se foi santo, este sobre cuja inocência não é possível recair a mais leve das dúvidas. A sentença de um inquirido era de hábito prodígio da Lógica depois de coagida a vencer labirintos de hipóteses escabrosas e cofissóes ao látego à guisa de evidências, de que se extraíam teses ardendo em execração pela presença insofismável do mal.

Como toda justiça, a Inquisitorial era ocupação e enquanto tal só faria sentido em oferecendo resultados: justiça é labor como outro qualquer e cuja especialidade, o julgar, exige presunção de culpa (pois a ninguém se permite em sã consciência julgare se é presumido inocente - caso este do santo), culpa que se perfilou em lei, que a prescreve ou, o que é o mesmo, que a prevê. É preciso, pois, que se estabeleça em lei culpa e se a presuma de alguém para poder outrem tirar desse quadro o próprio sustento. É de admirar, diante disto, que sejam tão poucos os condenados mundo afora.

Mas é perfeitamente compreensível, por isto e tudo mais, que brasileiros jamais fomos senão horda de degredados.