14 maio 2016

Em causa própria ou em nenhuma outra causa

A maior contribuição do Brasil para a ciência política ainda estará por reconhecer-se, mas só depois de esta jogar por terra o prurido de admitir seu axioma fundamental. É aqui no País que se tem demonstrado para além de qualquer dúvida que todo indivíduo, de necessidade político, só atua - só pode atuar - em causa própria.

Nada mais natural que assim seja, pois ameaçada ou perdida esta causa, que em importância é primeira, todas as demais que defenderia deixarão de ter vez. A arte do embate político, portanto, resume-se em pôr permanentemente em xeque a causa própria de todo opositor, desse modo trancando a possibilidade de que cogite invocar outras, as causas comuns, compartilhadas, fragilizando-lhe a capacidade ele fazê-las prosperar.

É incomum a causa própria do indivíduo ser a mesma de um outro e mais incomum ainda que seja a de grupo de indivíduos; entretanto toda e qualquer causa própria tem por eixo ou fundamento a sobrevivência, ou seja, a busca do indivíduo por manter-se vivo, que pode ser dita a 'causa própria universal'.

Das causas comuns - ou causas partilhadas - pode dizer-se  serem constructos abraçados por mais de um indivíduo por abrigarem ao menos uma causa abraçada por cada um deles e, no mínimo, a 'causa própria universal', podendo estas duas ser, inclusive, uma e a mesma.

Como é evidente, a 'causa própria universal' não possui por si 'corpo', senão excepcionalmente. É inteiramente geral, 'substancializando-se' em outras causas próprias, que lhe conferem a possibilidade de ter algum efeito. Quando 'substancializada em si mesma', excepcionalmente, a 'causa própria universal' se constitui na manutenção imediata dos sistemas vitais do indivíduo, o que habitualmente a condição gregária tende a prover para a grande parte ou para a totalidade dos elementos na grei. A 'causa própria universal' é a essência ou o eixo das causas próprias palpáveis, ainda que entre si conflitantes, e todas as causas, mesmo as coletivas, têm por raiz - ou eixo, ou  essência - a 'causa própria universal'.

Num sistema de gestão da 'coisa pública' admitindo a representatividade a posição de representante de subgrupo da sociedade determina uma causa própria peculiar, que é a de o indivíduo conservar-se na condição de representante, isto é, a de manter-se na assembléia de representantes. Do jogo político de que consta a representatividade, portanto, é parte inalienável algum empenho de cada representante, visando a prevalência da causa comum que foi instado a defender na assembléia, em ameaçar a estabilidade da condição representativa do outro.

Embora inseparável do jogo político representativo, o empenho dos representantes em reciprocamente por em xeque suas estabilidades enquanto representantes é fator cujo abuso e descontrole generalizados é comum determinarem seja o caos do sistema, seja sua estagnação. Para que a administração pública avance é preciso que o embate ocorra no plano das causas comums defendidas por cada representante, servindo o embate no nível das causas próprias como instrumento circunstancial de pressão em apoio às disputas no outro nível.

O embate das causas comuns ou coletivas defendidas por cada representante é suposto se dar pela avaliação de qual ou quais delas oferecem as maiores vantagens e os menores danos para a comunidade como um todo, decorrendo, pois, no âmbito da argumentação técnica, onde com exclusividade é esperado resolver-se. O uso do embate  no nível da causa própria de cada representante, portanto, deveria ser desnecessário, sendo sinal de algum tipo de fragilidade do tecido político quando presente, tendendo a disseminar-se e a prevalecer, caso providências não sejam tomadas para estancá-lo ou para, no mínimo, mantê-lo em patamares toleráveis. Perdido esse controle mínimo sobre ele, tende a tornar-se a face visível das assembléias de representantes, postergando ou eliminando por completo o debate sobre as causas comuns.

O único fator com capacidade suficiente para contornar assmbleias de representantes em caos ou estagnadas é a opinião pública forte ou organizada, que pode agir tanto diretamente, pela massa de cidadãos, quanto indiretamente, quando apóia em massa um representante e assim o capacita a resover o óbice, recolocando em pauta a discussão das causas coletivas. É entretanto possível que o embate de causas próprias dos representantes contamine as massas, impedindo-as de tomar as rédeas da situação, impedindo-as de organizar-se, desse modo pavimentando o caminho para a desordem geral, o embate disseminado, a guerra civil. Circunstâncias como essa tendem a permanecer indefinidamente ou até que as perdas determinem seja a eliminação ou o suficiente enfraquecimento de uma ou mais das facções envolvidas, seja a trégua e a negociação, que não passa do estabelecimento ou restabelecimento das causas comuns.

Diante desta exposição é possível talvez mensurar a estabilidade de uma nação e os riscos a que está sujeita avaliando-se o comportamento dos representantes quanto ao uso ou abuso do embate de causas próprias enquanto dispositivo de pressão para a viabilização das causas coletivas que debatem. A maior visibilidade do debate sobre causas coletivas, então, é sinal de o sistema conservar-se estável e quanto mais visível é o embate de causas próprias, maiores a instabilidade e o risco de contaminação da esfera dos cidadãos. Há também a circunstância de entre os representantes prevalecer o embate de causas próprias e este não ter a visibilidade que lhe caberia, sinalilzando a possibilidade de o embate em torno às causas comuns estar sendo utilizado como cortina de fumaça para o outro, o que seria detectável pelos recorrentes impasses ou alguma estagnação do país determinada pela escassa coerência dos projetos aprovados, ocorrendo mais perdas do que ganhos para a população em geral.

Assim que em termos ideais é imprescindível que a causa própria de um representante e a causa comum, por ele representada, se impossível coincidirem, sejam quase a mesma ou tenha esta última a anterior por eixo, de modo a garantir que a consecução de uma se articule na consecução da outra inevitavelmente. Fora dessa perspectiva a atividade política representativa não procede, estanca. Isto porque o princípio por trás desse panorama estabelece que só se vive em causa própria ou em causa nenhuma.

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