01 outubro 2019

De um ditado, a uma fábula: fazendo sentido de uns tantos sinais - ou em defesa da legítima defesa.

Para Sandra Paes.

Pode trata-se de palpite, e exagerado, aquilo de dizer que as grandes ideias aparecem primeiro nas mentes loucas, migrando em seguida para a dos artistas, só então sendo percebidas pelos filósofos, que as comunicam aos homens de ciência que, por sua vez, abrem caminho para engenheiros fazerem delas coisa que se use. Mas se damos algum crédito  a esse hipotético sequenciamento de fatos, não seria também o caso de dar atenção à defesa que há séculos uma certa classe de dementes faz do uso generalizado de armas como preventivo da disseminação da violência? Não que se trate de ideia verdadeiramente grande, embora não se possa negar ser de particular utilidade a atenção que lhe daríamos, como se verificará a seguir.

Esses pobres coitados estariam referindo, na verdade, eles próprios, inadvertidamente alertando a nós demais para o perigo que representam em sendo, como são, adictos de uma rusga que de preferência acabe em sangue - e, de preferência, não o deles. Não que sejam ou se tenham tornado 'bonzinhos': de fato continuam dementes como sempre e intentam desse modo apenas aumentar o número de participantes em seu ritual preferido, pouco se-lhes dando que seu projeto termine por municiar seus alvos preferenciais, de hábito indefesos defensores de sociedade pacífica, que decerto lhes teriam na mira quando necessário.

A razão no fundo de tamanho descabimento não poderia ser mais simplória: estão seguros de que sacarão primeiro de suas armas, de que estarão melhor escudados ou entrincheirados. Em suma, estão certos de prevalecerem sempre, uma vez que sua meta, como a de quaisquer de nós, é o exercício de algum 'poder', no caso, entretanto, esse pífio, destemperado, de submeter todos à própria vontade ou de sobreviver em detrimento de quem quer que seja.

Vale, portanto, dar ouvidos à sua sanha armamentista, assim como ao uso quenp de há muito fazem da violência que lhes inere com as armas que já possuem, e quiçá achar meio de realizar o quanto antes e com o mínimo possível de sujeira, a título de medida preventiva ou legítima defesa, aquilo para que devem estar preparados, caso algo de minimamente coerente lhes tenha restado nas cabeças, aquilo para que, na verdade, todos nascemos:  tornar-nos adubo. Já passa da hora de, por outro lado, seguirmos a moral que, desta feita, um sábio, Esopo, nos legou na fábula do cordeiro e do lobo, e que corresponderia aproximadamente a:  não há razão que satisfaça a um tirano.

De nada adiantou a ovelha argumentar sobre ser impossível ter enlameado a água de que bebia também o lobo, porque ela estava correnteza abaixo, que não poderia ser ela quem o teria xingado no ano anterior, porque só contava seis meses de vida - ou melhor, se algo adiantou para a pobre da ovelha toda essa conversa, foi o ter vivido o suficiente para se dar conta da moral da história ao ser devorada, depois de o lobo 'formar a convicção' de ter sido o pai dela quem o xingou.

O dar a outra face, espécie de contra-argumento final da vítima quando quaisquer outros se mostram irrelevantes na contenção da tirania ou da tortura a que é submetida, teria o condão de confrontar o tirano ou o torturador com a evidência de que falhou na estratégia de procurar justificar seu impulso destrutivo de outro modo que não como mero ímpeto de destruir, de torturar - aliás, torturadores experientes é sabido usarem da argumentação falaz como um de seus instrumentos, de modo mesmo a amplificar a dor que impõem à vítima. Na fábula, entretanto, a ovelha não o utiliza, é possível que por lhe ter faltado a oportunidade, mas é provável mesmo que por já ter sido mais que evidenciada a intenção do lobo e por não estar em meio às intenções dela o capitular. Porque é esse, de capitulação, o sentido central do oferecer a outra face, vindo embora somado a espécie de audácia ou destemor que, a propósito, seria capaz de privar de todo o élan um sádico autêntico e cujo prazer estaria em obter da vítima os sinais incontestes de que sofre a contragosto, diferentemente do masoquista, a quem, ao contrário, deleita o sofrimento.

São poucos, portanto, os capacitados a arcar com tudo quanto acarreta havê-lo usado, e mesmo aquele que o tornou conhecido vacilou ao menos uma vez diante de suas óbvias consequências, quando desejou ter afastado de si tal "cálice", já a meio-caminho do suplício que terminaria numa cruz. O estóico Epicteto foi outro a ter estrutura suficiente para, a despeito do resultados, usar do argumento em uma sua variação, quando advertiu o indivíduo de quem foi escravo de que aleijaria uma de suas pernas se continuasse golpeando-a com tamanha fúria, ou seja, alertou o sujeito para o fato de que inutilizava um de seus próprios bens, de que o alijava da serventia que tinha enquanto escravo, mas não foi ouvido.

É justo aí, no dar a outra face, ou melhor, em o recusando, que a proposta de armar-se vai buscar justificativa: para quem a defende, pois, o argumento final - ou mesmo único - da vítima diante de um acossador teria de ser antes o aniquilá-lo de maneira sumária ou, ainda, a recusa peremptória a capitular ante acosso ou tortura e com que, é bem provável, a ovelha de Esopo gostasse de contar. No entanto não seriam poucos os lobos que igualmente apreciariam ter a mais em seu arsenal esse ítem e que se vestiriam de cordeiro, se necessário, para o pleitear, o caso desses tornados dependentes da química endógena às circunstâncias de conflito, bem como dos que fazem fortunas com o municiá-los.

Enfim, há um aspecto de fatalismo nesses momentos em que de fato parece não haver escolha, senão entre resignar-se a perecer e reagir à agressão cega e surda a todo apelo da razão, ou ainda, a escolha entre dar a vida em nome do quanto conquistou a civilização em termos de ética e dar passo atrás na suposta escala evolutiva, equiparando-se àqueles bichos de que tanto e de modo tão árduo procuramos nos distinguir. Afora isto, resta somente cogitar de prevenir tais ocorrências, se não de todo, ao menos em termos de sua frequência, para o que só se conta com a compreensão do que as causa, se é o caso o abrir mão de todo revide. Os que especulam nesse sentido, entretanto, vêm-se muito amiúde esbarrar - ou buscam arrimo - na que seria, das soluções para o problema, a mais fácil, não fosse também estéril ou dificilmente frutífera quanto ao que se almeja: trata-se da que atribui a algo inerente ao 'bicho-homem' a eventual perda da sua porção de humanidade, mais conhecida como a hipótese do lado mau ou obscuro da 'condição' ou 'natureza' humana.

Se algo de incontestável se quer dizer sobre uma suposta 'natureza humana', isto seria, antes de mais, a natureza elusiva do quanto seriam seus atributos - entre os quais, naturalmente, a capacidade de produzir o que se entende por 'mal' - ou, ainda e melhor, a variegada aparição dos mesmos, ao que parece, atributo ineludível de todos ser vivo, correspondendo mais precisamente à capacidade necessária de adaptar-se aos rigores do meio em que está e cuja alternativa única é o perecer. Em suma, não passa de mero truísmo vindicar o cometimento de más ações pelo indivído com a ideia de 'por natureza' ele ser capaz de as cometer, porque se é capaz de cometer seja o que for, conquanto isso não frustre o que se intenta obter, e tal é ditado não somente pelo que de inato o indivíduo tem, mas por igualmente o quanto o meio em que está lhe exige usar do acervo de suas aptidões.

A consideração disto conduz incontinente ao rol das escolhas feitas no processo de civilizar-nos, não necessariamente ou intrinsecamente más, embora em virtude do uso ostensivo e prolongado umas tantas se tenham tornado maléficas. O fato de havermos permitido - é provável que por ter parecido a nós ser fonte de justiça - consolidar-se no alicerce sob qualquer grei humana - o da produção e distribuição de riqueza, ou economia - sistema  de atribuição de valor, segundo escala numeral,  aos diferentes tipos de trabalho humano não pode ser posto de parte enquanto deliberada - embora precipitada - engenharia das relações sociais em que se naturaliza - sem que se a justifique - a prevalência de uns sobre os demais indivíduos: eis o 'ecossistema' a que nossa natureza vem respondendo.

Vulgo 'preço', o valor em  moeda não se atribui ao produzido, mas ao trabalho de o produzir, como bem alertou Smith, por certo dando azo, assim, a que figuras como Marx daí derivassem intermináveis sistemas. E dizer 'trabalho' é referir tudo quanto possui um ser vivo em resposta ao próprio meio na faina necessária de sobreviver. Não é de admirar que num ambiente engenhado sob semelhantes premissas a 'pulsão' de permenecer vivo engendre soluções cujos resultados são todos passíveis de descrever-se no âmbito da acepção de 'guerra', no caso, uma declarada em regime de permanência e no âmago da sociedade ela mesma.

Prevalecer ou evitar que se prevaleça são os motores tanto dos lobos quanto da resistência que se lhes possa fazer, aí incluso o dar a outra face, porque capitular, mesmo depois de confrontar o atacante, também sinaliza para a opção de abrir mão da própria existência - de abandonar esse jogo - quando fadada a semelhantes penas. Parece não haver outros resultados possíveis de advir dum habitat constituído como o fizemos, nem modos de aí viver-se distintos destes. A diferença é e será feita, como sempre, pelo quanto, dentre tanto, se sabe escolher ou, de maneira mais ampla, pela escolha de revisar e remodelar isto que nos vem induzindo a semelhantes opções.

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