14 junho 2020

'Neoliberalismo' e a inútil guerra ao que representa

'Neoliberalismo' é o resultado ideológico da tensão estabelecida desde o século XIX entre o capitalismo e a agenda dita 'de esquerda' em prol do Eatado de Direito. Em si o capitalismo não mudou uma vírgula do que em essência é (ou seja, sistema resultando do uso do conceito de dinheiro) depois do credo neoliberal, passando a ser, isto sim, mais franco quanto aos seus objetivos e aos meios de os atingir. Seria, como costumo dizer, um 'neo-despotismo esclarecido', adotando inclusive traços fundamentais do despotismo esclarecido clássico (contemporâneo do Iluminismo), como o viés populista, denotado na ideia de que haverá quinhão justo da riqueza para todos, uma vez o (famoso) 'bolo' cresça o suficiente.

Com a instalação da URSS o capitalismo passa a mais seriamente procurar por argumentos que o justifiquem e por procedimentos que garantam seu irreversível sucesso, lançando mão de inclusive pontos da agenda da esquerda, ou ainda, cedendo terreno ao Estado de Direito sempre que não tinha capacidade de solucionar, e com agilidade, problemas cruciais, mormente ao longo de catástrofes como as duas Grandes Guerras e as crises que tem de parir a cada decênio. Embora um bocado diversificada, a ideologia neoliberal tem por meta inegociável recobrar o que cedeu ao Estado de Direito e por metodologia usa o velho 'morde e assopra', em que alterna a crua sinceridade do individualismo capitalista e a desgastada história da carochinha do 'bolo' que é preciso fazer crescer para ser 'dividido'.

Tudo sempre foi mercadoria nesse sistema, exceto a partir dos horrores das Grandes Guerras, que por 'sorte' ocorreram quando o debate em Ética havia ganho alguma maturidade, a suficiente para chegarmos a uma Carta - mais ou menos universal - sobre Direitos Humanos. Com o tom franco acerca de suas cruezas e a nota da promessa 'a fundo perdido' de uma desigualdade menos acentuada o capitalismo vem formando verdadeiro exército de seguidores no front de sua reconquista do poder de comerciar seja o que for. A fobia pela esquerda nutrida por esses 'soldados', apoiada nas notícias dos 'insucessos' da agenda da esquerda ao longo do século passado e, mais, nas desgraças que teria ocasionado (a maior parte delas fomentadas pelo próprio capitalismo, história essa, portanto, muito mal contada), tem sido o instrumento mais eficaz (mais do que o 'morde e assopra') na arregimentação das hostes neoliberais, não raro no campo legítimo da esquerda, de onde vêm os mais propensos a fanatismos, inimigos viscerais do esquerdismo.

A 'guerra' (a propósito, instituição permanente desde a concepçáo da ideia de dinheiro e a ela inerente) contra o capital é necessariamente circunscrita ao terreno das ideias e, é claro, das atitudes coerentes com elas. De nada adianta, por exemplo, acreditar-se anti-capitalista e agir sob coação do capitalismo, circunstância muito comum e sintomática de seja a ausência de unidade dos anti-capitalistas, seja inconsistência no que deva ser o anti-capitalismo, ambos os casos resultando da reflexão incipiente. Para sair-se desse impasse seria preciso haver clareza na compreensão de que por esforço isolado do indivíduo o capitalismo jamais se dissolverá (ponto autoevidente), nem em se mantendo o uso indiscriminado e irrefletido do dinheiro (que é sua mola mestra), sem programa de ações coletivas que conduzam os indivíduos ao afastamento ideológico progressivo do sistema, não ao confronto (porque o uso do dinheiro é por natureza confronto, de modo que confrontá-lo é jogada em que é imbatível, frustrada de saída para o opositor), e sem o contigente de usuários seus - ainda que modesto - disposto a seguir tal programa. Por fim, é também preciso compreender com clareza que a concepção de um 'capitalismo disciplinado' antecedendo a extinção do capitalismo, característica disto a que em grande parte reduziu-se a esquerda, é - como tem-se mostrado seguidamente - inócua, daí advindo a alternância de ciclos em que os Estados pendem para a direita ou para a esquerda, mas sem jamais se afastarem de fato do sistema do capital.

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