08 agosto 2024

Uma incursão pelo prosaico - e sob permanente reforma - autoritarismo do mundo

 Escritório vazio, a funcionária - única - rabiscando algum retalho de papel ou acariciando a tela do celular, cena incomum num lugar a que aposentados e outros necessitados têm de comparecer enquanto evidências ambulantes de ainda viverem. A informação foi de que todo serviço prestado pelo departamento - CRAS - teria de ser agendado ao longo de dois únicos dias a cada mes, por telefone ou "no site". A pedido das duas amigas que acompanhava ao local, liguei no dia marcado, por sorte, o seguinte, apenas para saber que todas as vagas estavam preenchidas e a nova data de agendamento seria daí a treze dias. É evidente, como a prefeitura não deve disponibilizar atendimento por telefone na madrugada, a agenda havia-se esgotado nas primeiras horas da manhã ou durante a madrugada mesmo, mas pela Internet.

Se alguma vantagem para o usuário desse serviço há nos recentes recursos da tecnologia, seria a de ser poupado de pôr-se em pessoa em fila antes do nascer do sol à espera de senha incerta, caso não tenha escolhido passar a noite com outros no local para acreditar que desse modo a receberia. Isto porque, se assim foi e não houve sucesso, haveria sempre a noite seguinte inteira para esperar, em contraste com a atual circunstância de a noite seguinte ocorrer treze ou mais dias à frente. Aposentados e outros necessitados terão doravante de passar online essas noites bissextas, é provável que insones, conforme a conexão que possuam, isto se, é claro, possuem uma: falhar em agendar-se é sinônimo estrito de míngua, sem dinheiro 'pingando' na conta bancária e, caso de quem já tinha benefício, de reinício de todo o processo para obtê-lo de volta.

Para o chamado 'mercado', por outro lado, há vantagem apreciável, ainda que da boca para fora diga ser pequena ou sequer a reconheça, pois afinal é com atitudes assim, embora miúdas, que subtancia sua pressão sobre governos de qualquer denominação para manterem estável ou crescente o fluxo de dinheiro indo para uns ceertos tantos - não tão poucos - convivas do festim permanente que promove. Fato é que ou os incessantes resmungos e protestos do financismo têm encontrado eco nas agências do governo, ou de iniciativa própria e na calada da noite o governo trata de disciplinar a 'torneira' da seguridade social, demonstração de não ir das pernas assim tão bem como bravateia diante de parlamentares empedernidos da oposição.

Há quem vem dizendo, em vista do uso ostensivo dos meios eletrônicos para conter o fluxo presencial de gente aos serviços em geral, tanto públicos quanto privados, que desde as imposições para debelação da recente pandemia de coronavírus os humanos passamos mais e mais a flertar em massa com os artifícios do autoritarismo, requisitando-os, mais do que apenas os tolerando, no que se revela ignorância grosseira, ou propaganda alarmista (não menos ignorância, no entanto) de quem assim diz, haja ver as mencionadas filas d'antanho de mendicantes de senhas na madrugada, sem esquecer de tudo quanto é provido pelo mercado, cujo autoritarismo inerente é contornado em especial com a propalação da crença de seus usuários sermos livres no desfrute da diversidade produtiva que impinge ao meio e o destrói, como se tal fosse mostra alguma de grandeza, magnanimidade, e não necessidade própria de sua natureza, que para subsistir tem de nos moldar em consumidores compulsivos.

Em estrutura ou essência o assim dito 'sistema' é o mesmo faz milênios, desde muito antes de o Estado apropriar-se da emissão de moeda, anda na Grécia pré-clássica. O que muda são a ordem polítca e a escalada tecnológica, uma e outra empenhadas em tanto dissimular quanto conservar a eficiência do que não pode prescindir de ser autoritário, no que têm tido sucesso inconteste, vide os ditos formadores de opinião referidos, muitos dos quais, a propósito, atuando deliberadamente pela solidez do sistema, não nos enganemos em mais isto.