08 agosto 2017

Da arte de destruir pelo desdém

Boas ideias seriam, em tese, 'duras na queda' ou imbatíveis quando confrontadas em seu próprio terreno, o das ideias, é claro. Fora desse contexto parece haver somente duas maneiras clássicas de combatê-las e de seguramente derrotá-las: a boa e velha caça às bruxas, dando fim em quem e no que as transmite, e ignorando-as. A primeira é historicamente a preferida por regimes de governo explicitamente intolerantes e em seus currículos de atrocidades são as entradas que mais os fazem desprezíveis. Já a segunda passou a integrar em definitivo a alçada governamental faz pouco tempo, sendo também conhecida como 'desinformação', embora não seja prática nada recente. Sua virtude está em poupar quem a emprega de ser acusado de ter as mãos injustamente sujas de sangue ou de ser um supressor da livre expressão.

É evidente, não é afazer trivial o desdenhar boas ideias. Ideias são desdenháveis, mas por outras, melhores, e aqui o pressuposto é o de que se combatem ideias boas, essas em oposição a que ainda não se achou ou de fato não há outra melhor. O desdém por ideias desse calibre, portanto, tem de ser operado por ideias que lhes são inferiores, embora tratadas como se não o fossem, o que se consegue pelo artifício árduo de repeti-las ad nauseam até se encravarem no senso comum, ou via recurso à autoridade, falácia clássica que consiste em usar um presumido especialista para refutá-las com argumentos de aparente consistência, provavelmente escorados na desinformação já bem sedimentada no senso comum, trabalho esse redutível a um aval sucinto, dependendo da reputação de quem o dá.

Para desapontamento dos aficionados, Platão e o platonismo foram expoentes na arte de ignorar boas ideias. Diálogos como Teeteto, Protágoras e Sofista são exemplos eloquentes na obra do primeiro de sua mestria no assunto: a sofística, em geral, e um dos seus grandes praticantes, Protágoras, em particular, foram por certo seus alvos preferidos. Deixou consagrados, contra uma, o desprezo por fazer de mercadoria a arte de argumentar, e contra o outro, uma imagem de ridículo construída com a análise de uma única sentença fora do seu contexto (Teeteto) e com um ardil aplicado por um Sócrates ainda jovem ao sofista já ancião, que só no final do debate se dá conta de ter defendido o argumento contrário ao que defendia no início (Protágoras). Já sob o rastro do platonismo desaparecem escolas inteiras de filosofia, enquanto outras são reduzidas a fragmentos, citações em escritos alheios, ao longo dos quase mil anos que durou a Academia, que o protegia.

A filosofia dos cristãos teria começado como auto-defesa numa Roma predominantemente dissoluta, corroída por seu poder imperial inédito, a que resistia um estoicismo indiferente às doutrinas saídas da Judéia. Bastou entretanto tornar-se Estado para passar o cristianismo à ofensiva no melhor estilo supressivo da modalidade 'caça ás bruxas' quando o opositor não se curvava a seus argumentos. O Método cartesiano ensaia minimizar o empirismo inglês e, mais recentemente, Russell finge ignorar detalhes cruciais do idealismo de Berkeley para desmerecê-lo, ambas as tentativas frustradas. E enquanto isso a ciência dita oficial, encastelada no que alguns rotulam de seu 'cartesianismo neo-platônico', ignora tudo que não lhe fale em seu rigoroso dialeto de números (incluídos os das somas bilionárias que deixa engordando no mercado financeiro).

No entanto nada parece comparar-se ao sucesso do capitalismo em suprimir pelo desdém as ideias que o contrariam desde que tropeçou com o coquetel de trivialidades hoje chamado de neoliberalismo. A rigor os governos que o cultuam jamais abandonaram a outra prática supressora, a sanguinária, tornada entretanto invisível ou minimizada ao máximo pelo domínio excelente que têm da informação: matam, até admitem, mas fanáticos, inimigos da liberdade e outras insignificâncias peçonhetas - não há contestar que o sejam! Aos olhos do comum o mundo em que vive parece gozar da perfeita livre expressão e da maior liberdade que espera assumir quando se trata de rechaçar quem ou o que identifica como anti-capitalista, enfim, acredita viver em democracia plena, tanto que, veja-se só, pode até assumir com orgulho ser anti-democrata ou, de pilhéria, anti-capitalista. Os resultados desse virtuosismo contra-ideológico são notáveis mesmo no campo dos que o combatem seguros de terem ideia nítida do que combatem: não é raro constatar nesses indivíduos sinais de aculturação crônicos, o mais acentuado dos quais o hábito de ignorar ideias que não lhes agradam quando não contam com argumentos para discuti-las, destas as mais ignoradas, mesmo tendo de memória e na ponta da língua truques para contestá-las, as ideias que induzem ao próprio capitalismo, tão interiorizadas as têm que nem se dão mais conta de as usarem. E, ora, ideias capitalistas combatendo o capitalismo? Estamos falando no paraíso neoliberal!

À guisa de observação final com tintas de humor sombrio,. hoje, com a eficácia da supressão pelo desdém, que faz tudo parecer ridículo, inexistem curiosidade e mesmo ideias capacitando seus portadores a reconhecerem outras de igual ou melhor qualidade. Frente ao presente marasmo intelectual e espiritual colorindo de ridículo cada recanto pensante do planeta, enquanto entes vivos que decerto devem ser, as ideias, em especial as boas, é provável lamentem-se de haver passado o tempo em que mormente se queimava tudo em que eram escritas e se aniquilava quem as defendesse. Tamanho suplício, em vista da comoção que despertavam, trazia consigo também a curiosidade, pois é evidente haver grande importância no que se procura afastar do conhecimento geral por meios assim violentos, o que dava a elas, ideias, ao menos alguma esperança de sobrevida aos cuidados de quem por isso mesmo as examinaria com a mais criteriosa das atenções.

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