04 agosto 2017

EM NOME DAS 'INSTITUIÇÕES'

A lógica jurídica do juiz Moro pode não estar tão capenga quanto alegam, só por ter desafiado Lula a provar a pópria inocência. É que para o juiz o caso está encerrado, está seguro de haver provado em definitivo a culpa de Lula, a quem caberia agora refutar seus argumentos.

Casos assim são mato no mundo real e hoje lhes seríamos por inteiro indiferentes se o mundo da carochinha de televisão, jornais, literatura e cinema se ocupasse de relatar deles o terço - abrindo mão, evidentemente, de falar em outra coisa, já que não teria tempo ou espaço para mais nada. Entretanto o pouco que nos dá dessas histórias escabrosas, se chega num embrulho sob medida para nos tocar o senso de justiça, tem por fim proporcionar emoção passageira, ainda que forte, e não o estímulo da reflexão: secadas umas lágrimas formais, damo-nos por satisfeitos com a sorte de que não éramos nós - ainda - no lugar daqueles infelizes, sepultando o assunto.

De momento me vêm à memória dois exemplos análogos, de indivíduos condenados tendo de provar inocência perante a convicção universal de serem culpados: o dos irmãos Naves, no nascer do Estado Novo, e o dos Quatro de Guildford, somados aos Sete de Maguire (três dos quais não eram de fato 'Maguire'), na 'liberal' Inglaterra dos anos 70. Em comum as duas histórias têm a ausência ou a falsificação de provas em nome de salvar da pecha de ineficiência as 'Instituições' de governo: como justificar perante uma população em alarme que a dispendiosa segurança de Estado foi incapaz de determinar o responsável por crime assombroso?

Tendo isto em mente, compreende-se que crimes sem solução são os de autor inimputável e dos quais, por azar, não foi possível obter o suficiente para um roteiro apontando alguém sem sorte para levar a culpa, sem falar naqueles cujas vítimas são por consenso desimportantes. À exceção dos que prescreveram e são lembrados para a emoção momentãnea de alguma platéia, crimes insolvíveis voltam à tona somente quando se quer chacoalhar as 'Instituições'. Já os resolvidos, é provável que bom número deles o esteja de fato.

O ordálio do Naves sobrevivente só termina quando o acaso o põe de frente com o primo, de cujo assassinato foi acusado com o irmão. Por essa época vivia a condição humilhada de ex-condenado tolerado na sociedade para que retornou na miséria a que se viu reduzido com a família depois do pesadelo de década e meia que lhe matou o irmão e violou a mãe e demais mulheres da família. Seu caso resumiu-se desde o início a demolir uma convicção a que só faltava a confissão, já que não se amealharam provas.

Não é que lhes coubesse, enquanto acusados, o ônus de se provarem inocentes: prova já havia, mas de serem culpados, a tal convicção dos acusadores, a que tiveram de ajuntar sob tortura a confissão. Tratava-se, pois, de demonstrarem a monstruosidade da convicção de que notificaram as autoridades do sumiço do primo depois de darem fim ao corpo e ao dinheiro roubado (parte do qual lhes pertencia de direito na sociedade que tinham com a suposta vítima), fatos de que meros leitores de folhetim policial deduziriam os óbvios culpados. Sua inocência custaria à máquina de Estado a reputação de incompetente: era jogo que perdiam para ela ao mover a primeira peça.

A justiça britânica não se prestaria a semelhante vexame: a convicção com que condenou os Conlon e os Maguire foi feita de confissões sob tortura, mas amparadas por provas, todas forjadas. Cerca de quinze anos foram precisos para o desmembramento do crime da máquina 'institucional' que ao fim lhes concede apenas pedido de desculpas. Como de fato ressarcir quem teve quinze ou mais anos de liberdade e a reputação roubados?

A doutrina dominante, intuitiva, é a da confiança nas 'Instituições', o que faz sentido, uma vez que de outro modo país nenhum se mantém uno por muito tempo. De maneira que ao sinal de caírem no descrédito tendemos a reformá-las ou, mais radicalmente, substituí-las. Há inclusive a tese de haver 'Instituições' inerentemente boas, embora não imunes aos desmandos de quem as toca. Afinal, por exemplo, centenas são libertados da prisão excedendo os tempos determinados nas sentenças, mas de outro lado a juíza que lhes fez justiça é punida: com a 'Instituição' se faz, mas se desfaz também, e muito mais.

Não há como ser de outro modo quando, para além das óbvias, consensuais e que não necessitam escrever-se, leis são criadas a granel com a proscrição de atos quaisquer e têm confiada sua observação ou aplicação a quem faz a vida com descobrir e castigar quem as descumpra. Um mundo ordeiro é deserto em que não sobreviverão os oficiais das 'Instituições', assim como um mundo sadio é o inferno de medicina e farmácia assim como as compreendemos: como o crime para quem o caça e pune, a doença é perspectiva de riqueza para quem a cura, enquanto cura e sem garantir que curará.

Diz-se que o viés acentuadamente profilático da medicina chinesa tradicional se deve a que na China antiga só se remuneravam os médicos enquanto não houvesse doentes entre os indivíduos sob seus cuidados. Inspirados nesse modelo, nada impede de imaginarmos 'Instituições' resistentes a nossa índole instável, cujos salários só vigoram se no Estado há ordem perfeita, a felicidade da ausência de coerções. Nessas circunstâncias é possível que legisladores, magistrados, polícias e demais servidores 'institucionais' se tornassem investigadores incansáveis do bem-estar, cientistas sociais capazes de identificar as causas de malfeitos, mais do que sua provável ou iminente ocorrência, e de conceber maneiras de contê-las pacificamente, antes de se tornarem eficientes.

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